segunda-feira, 28 de fevereiro de 2005

Reencontro outra vez

"Não sou rico, não sei jogar bola, não sou bom de porrada. Estudar é a minha maneira de chamar atenção." (*)

A frase me atingiu como uma flecha impiedosa. Cai na armadilha da identificação, que adora nos surpreender com o que já somos. Das linhas sai o impacto do se ver naquela descrição. Não adiantava olhar pro lado e disfarçar. Era comigo, era interno, restava-me suspirar e admitir que a frase me despiu.

Daquele jeito foi boa parte da minha vida escolar: sem muito luxo, mas com o suficiente para ir à aula em dignidade. Sempre renegado nas peladas do recreio, o menorzinho que olhava o corre-corre dos grandões, craques que nunca se cansavam. Eu corria, mas das brigas antes delas começarem. Tinha noção de minha fragilidade física, não arrumava nenhuma encrenca e por vezes tentando apaziguar algum desacordo para comigo me sentia meio otário. De repente, um soco de repente faria um bem tremendo pra mim! Mas e a advertência, a suspensão, a reputação, o futuro? Pra mim, a ameaça era séria e fazia meu sangue estancar.

Restava-me sentar na frente, copiar do quadro com rapidez, (tentar) ser um dos melhores alunos. O azul do boletim compensava tudo na minha auto-estima. Nunca tive paranóia de notas altas, mas terminar a prova rápido, naturalmente, sem me apressar, e ser o primeiro a sair de sala dava-me um ar de superioridade em relação aos demais, principalmente a todos que me espancavam emocionalmente.

Se queria também chamar a atenção, não sei dizer. Também nunca aspirei a intelectualidade, embora muitos me encarem assim. E o pior é quando encaram uma superioridade que não existe, intimidatória. Não sou mais criança, e não quero a distancia que precisei obter na escola. Ninguém é melhor ou pior por ser estudioso, craque, zelador ou papa de qualquer coisa. Apenas encontrei meu canto, regado ainda na infância: em meio aos livros, quem sabe um dia parindo um deles.

Mais do que estudar, escrever foi o movimento compensatório definitivo, que me encurralou desde a pouca idade. Movido por lembranças e esperanças, a ponta da caneta fica tonta e as linhas me chamam. Sinto-me mais à vontade do que em qualquer ambiente familiar, percebo que fui gerado pra assim ser e agir: escrevendo, Tirem-me isso e estarão me despedaçando. Estarão me seqüestrando de volta aos recreios intermináveis nos quais eu era preterido, às fases de minha infância que tento apagar traçando letras. Ou reescrever, no melhor propósito do verbo, olhando com olhos mais maduros o que aconteceu em minha imaturidade que fornece para meus 24 anos temas-chaves de vivência. Inegáveis.

Tenho cérebro, coração, mão e necessidade. Minha sede enorme riscando papéis com gosto, sem pretensões. Já quis ser escritor-prodigio, produzir textos aos 16 que se universalizassem e me conduzissem a qualquer tipo de ABL, com ego inflacionado. Hoje descubro que isso é babaquice, que a única coisa vital é me expressar sem ressalvas. É vão negociar com o espaço-tempo vigente a prioridade que o ato tradutório de escrever deve significar para mim. É levar flecha e ainda moribundo lançar outras de volta, mirando apenas no espelho, nada mais. É reler e ser flechado de novo.

Que ninguém encare como uma definição que aspira ser definitiva: mas escrever é ser persistente consigo mesmo. E ai de mim se me negar essa chance.

(*) Trecho do livro "Chove sobre minha infância", de Miguel Sanches Neto.