sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A crueldade desconhecida

Sou homem, branco, magro, heterossexual, classe média, carioca, cristão ocidental e ainda não cheguei aos 30. Por outro lado, já trabalhei com atendimento ao público, do mais ralé ao mais ricaço.

(O começo deste artigo é meio doido, mas chega em algum lugar, prometo.)

Descrevi minhas características acima porque me dei conta que faço parte de uma casta rara: os que não sofrem os preconceitos mais frequentes dos tempos atuais. Não conheço, na pele e por conta própria, como é ser segregado publicamente, do humor a todo tipo de violência.

As mulheres penam contra o machismo dominante; os negros continuam em sua luta pelo básico, mostrar que a raça é uma só, humana; os gordos viraram piada pronta; os homossexuais, mesmo com toda capacidade de articulação e acesso à mídia, ainda sofrem violência por sua opção; os pobres, cada vez mais marginalizados.

Também os adeptos de alguma religião diferente da tradicional bradam pela liberdade de expressão; aqueles que não são da terra da Globo têm que aturar novelas e programas apenas com o sotaque chiado; e sou público-alvo de todo o tipo de publicidade, estando longe de ser descartado da vida funcional.

Porém mesmo sem ter a chance de sofrer preconceitos do tipo, posso dizer que sei como é isso. E é o que qualquer um saberia se trabalhasse um mês no atendimento ao público de algum setor. Estar do lado de dentro do balcão (de informações, de venda, de guichês) faz você experimentar, em algum momento, e por alguma razão (por mais louca que seja) como é ser excluído, menosprezado, ignorado.

Você pode se esforçar e ter consciência das limitações que te impedem de dar o seu melhor - e isso pode ser inútil. Algumas pessoas compreendem, mas muitas chegam sem paciência e não enxergam nada além do próprio interesse. Já sabem o que querem ouvir, e ai de você se disser algo diferente!

No atendimento ao público você se sente moído por uma cruel engrenagem: a de enxergar o lado de quem você está atendendo e da instituição que é obrigada a realizar o atendimento. É sua a responsabilidade de conciliar os objetivos de ambos, sejam bem ou mal intencionados. Se em você existe alguma sensibilidade e bom senso, eles serão testados diariamente.

E durante esse processo você se sente um pária. Sente-se sozinho na sua árdua tarefa de querer trabalhar direito. Isolado. Marginalizado. Humilhado. Não é fácil, a não ser que você opte pela indiferença radicalizada, temperada às vezes pelo cinismo. Mas você não estaria sendo você mesmo...

Eu disse que esse artigo chegaria a algum lugar. Ele me levou ao cantinho da solidariedade que alimenta o desejo, quase obsceno para os dias de então, de não julgar para não ser julgado, e amar ao próximo como a mim mesmo. Sem politicamente correto, por favor.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A seca da chuva



Não aguento mais o noticiário sobre as chuvas, e não é de hoje. As mesmas imagens, os mesmos relatos, os mesmos dramas, o mesmo esquecimento assim que a temporada de aguaceiro passa. Quase nenhuma reportagem foge do lugar comum de colocar a natureza como vilã: "Chuvas castigam a região tal...".

Fato é que sempre choveu na face da Terra, e os terráqueos é que se organizaram nela para morar. Só que ficamos "na seca" quando esperamos que a imprensa varie um pouco a lenga-lenga e toque na ferida: afinal, o que o poder público fez (ou não fez) para que hoje situações de calamidade pública se tornassem corriqueiras após as chuvas nas regiões urbanas?

Uma rara exceção é a série de reportagens do Yahoo! Notícias sobre as enchentes em São Paulo (quem disse que na internet não há bom jornalismo?). Ali é mostrado como os governos de São Paulo dos últimos 30 anos não se preocuparam com a ocupação das margens dos rios Tietê e Pinheiros. E isso vale tanto para os moradores de baixa renda quanto para as grandes empresas que ali se instalaram.

O fenômeno da impermeabilização da beira dos rios, que impede o escoamento das águas, é explicado com clareza. As prefeituras e governos estaduais paulistas ficam ainda mais em xeque quando se constata que até uma escola municipal foi construída ao lado do Tietê. Ou quando autorizaram a construção de conjuntos habitacionais em região pantanosa. Mesmo os moradores de baixa renda têm acesso a serviços públicos, ou seja, o poder público sabia o que estava acontecendo. Um curralzinho de votos não faz mal a ninguém, certo?

(E não se enganem: o mesmo fenômeno acontecerá no Rio de Janeiro, em regiões nobres como a Barra da Tijuca, o Recreio dos Bandeirantes e Jacarepaguá, também repletas de terrenos pantanosos igualmente repletos de novos empreendimentos.)

A reportagem ainda mostra que a remoção dos habitantes da região é carregada de insensibilidade na abordagem por parte dos técnicos da prefeitura. E que os moradores dos tais conjuntos habitacionais de classe média sequer serão incomodados, ainda que seus prédios contribuam igualmente para a impermeabilização dos rios.

Para solucionar o problema das enchentes, todo o tipo de obra necessária seria subterrânea. Como no Japão, onde piscinas foram construídas embaixo da terra para escoar as águas. Além da retirada de detridos que aumentam o assoreamento no fundo do rio, facilitando que ele transborde e rompa as barragens."Um rio só se corrige se você parar de agredi-lo", conta um dos integrantes do Comitê Gestor da Área de Proteção Ambiental. Quanto às obras, ainda deixa a pergunta: "qual político no Brasil vai investir numa obra que ninguém vai ver?".

Portanto, senhor Gilberto Kassab e senhor José Serra: o que vocês estão fazendo hoje para que não sejam culpados pelos sucessores?

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

UP!

Quando estamos acostumados com animações digitais recheadas de referências e piadas para adultos, surge uma em que o lirismo é a principal característica. UP até possui o humor que já é famoso no gênero, mas em menor medida. O que cativa no filme são aspectos dramáticos em alta qualidade.

Um de seus grandes méritos é conseguir essa empatia a partir de um argumento quase estapafúrdio: um velhinho resolve se embrenhar na Amazônia voando com sua casa sustentada por milhares de balões. Tudo para cumprir uma promessa feita à esposa.

O velhinho terá a companhia forçada de um pequeno escoteiro cuja única medalha de honra que lhe falta é a de ajuda a um idoso. Além de ser a antítese das rabugices do velhinho, o guri é a encarnação da inocência desconcertante em vários momentos da história.

Como em toda boa animação, os dois protagonistas da história apresentam características que rompem com a tradição politicamente correta de Hollywood. O escoteiro é filho de pais divorciados, por exemplo. E o velhinho vira herói sem deixar de ser idoso, ainda que sua agilidade sexagenária possa ser questionável em algumas cenas (mas é um desenho de ficção, ora!).

Porém o melhor de UP são os momentos poéticos que ele apresenta. Seja no voo da casa, na trilha sonora muito bem colocada (Michael Giacchino, de Lost), nas conversas do velhinho com o garoto, nos objetivos que cada um deles (e também o vilão da história) possuem. Em tudo se percebe uma sensibilidade quase em 3D.

O fato do filme se passar quase sempre nos céus também nos deixa em suspenso (principalmente pra quem tem medo de altura, como eu), e é um recurso que se transforma num componente imprescindível ao roteiro. A já citada sensibilidade é tamanha que até mesmo a moral da história é passada de forma sutil.

E essa moral me tocou bastante. A ideia de que altas aventuras podem ser vividas no seu cotidiano, e que elas podem compor um mosaico tão impressionante quanto a biografia dos grandes exploradores universais. É muito difícil olharmos pra nossa vida sob esse viés, mas é exatamente isso que o roteiro fantástico (não como adjetivo, mas como gênero) me provocou.

Fora a reflexão, o filme é bonito. Bonito de ver, de acompanhar, de sentir. Um filmaço. As animações digitais estão cravando seu lugar na história do cinema, tanto nas bilheterias quanto na crítica. E UP mostra como a delicadeza na narrativa consegue desarmar qualquer um.



Trailer aqui.