segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Três décadas 

Meu pai tinha 30 anos. Minha mãe tinha 30 anos. Aí eu comecei a surgir.

Minhas lembranças começam no jardim-de-infância. Em frente ao meu prédio em São Cristóvão esperava dois coleguinhas cujo pai dirigia um táxi e me dava carona. Um gibi da Turma da Mônica, a bolsa com meu nome costurado e uma lancheirinha foram meus primeiros companheiros de cotidiano.

Na escolinha fiz uma festa de aniversário com um bolo do Homem-Aranha. Todo dia minha mãe vinha me buscar. Ela sempre comprava um guarda-chuva de chocolate que eu comia no caminho de casa. No Natal, participei de uma encenação sobre a vida de Jesus. Fiz um legionário romano - a única vez em que usei saia na vida! Fora a ironia prévia de encarnar um perseguidor de cristãos.

Em 1986, descobri que não era só eu. Tinha mais gente que vinha dos meus pais, você acredita? Eu só acreditei quando vi minha irmã no berço. Um temperamento tão diferente, muitas brigas e risadas dentro e fora de casa, e sempre uma deixa pra fazermos palhaçada juntos.

Meus primeiros contatos com o futebol começaram em 1986. Na Copa, via as vinhetas do Araken na Globo e repetia em casa, pra toda a família. Ele se disfarçava e de repente se despia pra ficar com a roupa do Brasil. A camisa era uma bandeira estilizada (uma das mais bonitas que já vi), que minha mãe comprou uma igualzinha pra mim.

No mesmo ano meu avô me iniciava na seara rubro-negra. Aos sete anos ele estava na inauguração do estádio de São Januário, quando o Flamengo venceu o Vasco por 2x1. Ali ele deixou de ser vascaíno, pelo resultado e por ter achado bonito o uniforme vermelho e preto. Eu tinha seis anos quando vovô Nelson comprou uma revista Placar. Na capa, o título carioca do Flamengo em cima do Vasco.

Em 1987 conheci o Maracanã pela primeira vez. Claro, vovô Nelson me levou até lá. Vestido como um jogador de futebol da cabeça aos pés (meião e kichute incluído), estávamos na arquibancada. Flamengo 1 x 0 Bangu. Quase vi o gol de Bebeto. Quando veio o cruzamento, a torcida se levantou e eu, pequenino, só consegui ver a festa generalizada.

Também em 1987 comecei uma parte importante da minha história: todo começo de tarde eu me perfilava no pátio do Colégio Pedro II para logo subir para as aulas. Foram 11 anos que valeram por uma vida inteira, de tantas emoções sentidas. Ali conheci a literatura, a política, ouvi falar de sexo, decidi-me pelo Jornalismo, tornei-me cidadão e construí minha identidade.

Por falar em identidade, é impossível esquecer a Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro, igreja frequentada por minha mãe desde que eu tinha um ano de idade. No batizado, lá estava eu no colo com um carrinho de brinquedo na mão, faceiro. Cresci religiosamente, aos 13 anos tive um encontro derradeiro com Cristo, descobri amigos, mentores e companheiros de jornada eternos.

Em 1992 escrevi um artigo sobre a morte de Ulysses Guimarães, numa gigantesca máquina de escrever Remington do vovô Nelson. Era um texto com um certo estilo, referências históricas ("Morre o Doutor Diretas") e um tom épico na despedida. Considero minha primeira matéria jornalística. Talvez bisavó de meus blogs.

Depois de uma série de redações com nota máxima na escola, aos 16 anos encontrei Fernando Sabino. Ele me encorajou a escrever crônicas. Parecia tão fácil pra ele, por que não tentar? Ganhei um computador e só mexia no Word. Foram muitos textos, ora copiando o estilo de Sabino, ora de Verissimo, até achar o meu lugar.

Em meio às paixões adolescentes, encontrei Carlos Drummond de Andrade. Ele me encorajou a escrever poesia. Parecia tão fácil pra ele, por que não tentar? E o que é melhor: seus versos não necessariamente rimavam, nem tinham métrica. Que liberdade! Ele foi meu terceiro avô.

Aos 18 anos fiz o primeiro vestibular. Mas só passei no segundo, no ano seguinte, na segunda reclassificação. Niterói entrou na minha vida graças à Universidade Federal Fluminense. Jornalismo. Não consegui marcar segunda opção em nenhuma das inscrições. Recentemente, quando minha esposa me perguntou o que eu seria se não fosse jornalista, emudeci por um bom tempo. "Já respondeu", disse ela.

Aos 23 anos encontrei Carolina. Ela já tinha me encontrado sete meses antes, e desde então não tirava os olhos de mim. Quando já tinha perdido as esperanças, olhei de volta. À beira do Aterro do Flamengo, nosso primeiro beijo. Um ano depois, a certeza de que éramos unidos de alma. Quatro meses depois, a proposta. Desde 2007, uma só carne.

Todo esse flashback me capturou hoje, quando faço 30 anos. Não estou me achando velho, não estou em crise, nem ansioso de realizar tudo que eu quero antes que seja tarde. Meu medo de sentir isso na data de hoje não se confirmou.

Só que hoje foi um dia muito, muito inesquecível. Logo às 7 da matina, meu pai me acordou para dar os parabéns. Pra completar, diz que me catou no Google e achou este blog. Leu vários artigos e, embora achasse os textos grandes, gostou. Meu pai, que NUNCA se aventurou pela internet! Foi um presentaço.

Ao chegar no trabalho, recebido com uma rede social de "Parabéns! Feliz aniversário!" ao vivo. E não era só isso. Assim como no dia que voltei de licença, um café da manhã comunitário pra comemorar. Assim como no dia que voltei de licença, não esperava.

Logo depois, minha mãe me liga e ora comigo ao telefone, numa das ações mais tocantes que uma pessoa pode fazer por outra. No almoço, Carolina me esperava para escrevermos mais um capítulo da história do Bar Luiz.

À tarde, outra surpresa no trabalho: um presente e um cartão personalizados. O fato de todos os aniversariantes terem recebido esse tipo de homenagem não diminui o significado do gesto. Ouvir os bastidores da busca pelo presente me emocionou.

No ônibus, voltando pra casa, não consegui me conter. Chorava de alegria pelo aniversário e por tudo o que me proporcionaram. Voltei às lágrimas sorridentes enquanto redigia essas linhas.

E pensar que ainda há mais 30 anos pela frente, ao menos! Mais 30 anos para escrever, mais 30 anos para amar Carolina, mais 30 anos curtindo meus amigos...

Fora os projetos que germinaram faz tempo e sabe Deus quando vão se realizar. Meus blogs vão virar livro? Meus documentários serão exibidos no Festival de Gramado? Meus alunos na faculdade de Comunicação vão gostar das minhas aulas? Meus filhos vão ser a minha cara? E vão ser flamenguistas? Etc etc etc...

São só 30 anos. E não é que parece?

domingo, 19 de setembro de 2010

Caminhando a gente se entende



Fiz questão de colocar no título do post o slogan da III Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa que o Lessa27 pôde acompanhar na data de hoje, em Copacabana. O clima era amistoso e o objetivo de ressaltar o respeito às diferenças parecia claro. Mesmo com os umbandistas e candomblecistas sendo maioria, a pluralidade de religiões estava representada.

Não é à toa que os representantes de religiões afro estavam em maior número. A explicação pode estar na vilanização desses grupos por parte dos evangélicos, flagrante em muitos de seus programas na TV aberta. Bem como a incitação à hostilização: episódios de templos afros atacados por evangélicos tornaram-se comuns nos últimos anos.

"Queremos que eles façam o que Jesus ensinou: amar ao próximo", disse o babalawo Ivanir dos Santos, principal líder da Caminhada. "Nosso país tem as religiões afro como parte de sua cultura, e elas devem ser respeitadas".

Diante desse contexto, difícil imaginar que os evangélicos pudessem dar as caras por lá. Mas eles compareceram.

Evangélicos perseguidos

"Somos minoria aqui, né?", reconheceu Amaury Fortes, da Igreja do Trem (de camisa preta, na foto abaixo). Eles estavam na caminhada para denunciar a perseguição que alegam sofrer pelo Estado. "Por medida judicial fomos proibidos de pregar nos trens do Rio de Janeiro. O Ministério Público entrou com uma ação, mas sequer fomos ouvidos".



Se a justificativa para medida fosse a tranquilidade dos passageiros ao diminuir as manifestações nos vagões, era possível compreender. Só que, segundo Amaury, quem tocar e cantar funk ou samba não será reprimido. "Mas se quisermos tocar música gospel, não podemos".

Evangélicos pedindo perdão

Um rapaz com luvas azuis de boxe tailandês nas mãos se destacava em meio aos participantes da Caminhada. Também estava com uma calça específica do esporte. Na camisa, a inscrição "Faixa preta de Jesus". Era o evangelista Sergio Eric, acompanhado do pastor Vagner Gonçalves. "Somos neo-pentecostais", ressaltava Sergio, sabendo que a confissão de fé soaria com mais impacto no lugar onde estavam.

Pertencentes ao Ministério Fogo Vivo, em Nova Iguaçu, eles mantêm um trabalho de recuperação de jovens delinquentes e viciados em drogas, também de combate à pedofilia. E o que estavam fazendo na Caminhada? "Queremos pedir perdão pelo preconceito que as igrejas evangélicas têm exercido contra outras religiões", continuava Sergio, num tom confiante e conciliador.

Evangélicos com visão cidadã

Os representantes da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, que organiza o diálogo interreligioso (do qual a Caminhada é um dos resultados), deram uma coletiva antes do evento. O Lessa27 conseguiu entrevistar alguns integrantes: dois anglicanos e um presbiteriano, vertentes evangélicas tradicionais.

O bispo anglicano Filadelfo Oliveira explicou que, indepentemente das diferenças que existam entre as religiões, elas devem ser respeitadas na expressão da sua fé. "Está no ethos da igreja anglicana ser ecumênico, interreligioso, com respeito à dignidade humana", contou Celso Franco (de estola preta), bispo emérito. "Nós nos sentimos em casa aqui".

"Quando sou pastor e vejo pessoas discriminarem outras, sou impedido de concordar com isso. Ainda que não me alinhe nas convicções de fé, não posso dar as costas. É por isso que estou aqui", conta Marcos Amaral, pastor presbiteriano.


Questionado se a Caminhada não corria o risco de ser apenas uma reação à hostilização religiosa, prorrogando assim o clima de conflito, Marcos refletiu sobre a visão missiológica da igreja evangélica. "Temos um versículo-chave que é o 'Ide por todo o mundo e pregai o evangelho'. O evangelho são boas novas, boas notícias. Se você está sendo perseguido, se seu santuário é destruído por terceiros, se seus filhos estão sendo humilhados na escola e alguém, que não professa a mesma fé que você, se levanta para te defender, isso é evangelho, é boa notícia".

"Temos que ir, mas não podemos impor nada. Jesus nunca veio impor. A igreja evangélica ainda não entendeu isso, e assim ela é conduzida ao conflito. Eu estou aqui para defender o direito dessas pessoas expressarem a sua fé, não estou concordando com essa fé", completou.

A cara do Brasil?

Embora a Caminhada fosse em defesa da liberdade religiosa, outros grupos estiveram presentes em Copacabana. A Igreja Reformada Ecumênica, apesar do nome, trazia na camisa a frase "Deus não tem religião". Maçons e ciganos (que não são uma religião, mas um grupo étnico) também apareceram.

A Caminhada teve uma participação expressiva, cerca de 150 mil pessoas. Em determinado momento quase toda a Avenida Atlântica estava preenchida. O que me veio à cabeça é que, mesmo com os episódios de intolerância registrados, fica difícil imaginar esse tipo de manifestação, de forma tão pacífica, em outro país.

Pude confirmar que a pluralidade religiosa, com doses de sincretismo, é algo tipicamente brasileiro. E que o crescimento evangélico, aliado à propriedade de meios de comunicação de massa, já começa a perturbar essa ordem, em todos os sentidos.

Porém é inegável que participar da Caminhada reforça o sentimento de comunidade tão necessário, ainda mais nas metrópoles. Qual o problema de pessoas tão parecidas com você expressarem uma fé diferente? E por que a simples convivência não pode coexistir com discordâncias? Não é assim em qualquer família?

Acompanhe abaixo mais retratos da Caminhada:


Ivanir dos Santos (de azul) e demais representantes da Comissão
de Combate à Intolerância Religiosa iniciam a Caminhada




Igreja Renovada Ecumênica 



 Eclair Heleno, grão-mestre da loja maçônica da Penha


Marino Novato, experiente em artesanatos de cultura afro


Mãe Francisca entrou na roda... da política

  
Emanuela e Ricardo Vacite, ciganos


O papa falou e disse

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Até que existe almoço grátis

"Todo mundo é ateu até passar por um grave problema de saúde". A frase de Millôr Fernandes resume bem, como só o bom humor é capaz, um comportamento universal. As divindades podem até variar - o genérico "força superior" vem a calhar, sem exigir muita profissão de fé. Mas é no meio do perrengue que o sobrenatural que pode nos socorrer é levado mais a sério.

Os crentes podem se desarmar da empáfia do "eu já sabia". Nós que cremos no Todo-Poderoso não raro agimos como se tal alcunha fosse um mero adereço de Deus. É fácil cair na tentação de querer ter tudo sob nosso controle, por vezes exigindo até que Papai do Céu nos obedeça, senão eu choro. Faça o que eu digo, mas não faço o que eu digo.

Aí a gente se percebe em situações sem saída e episódios que sublinham nossas óbvias limitações. Flagramo-nos fracos, frouxos, desanimados e derrotados. O monstro varia de tamanho e alcance, mas pode nos acossar simplesmente nos expondo como somos. Nossa majestade nua perante nós mesmos, destacando o ridículo de se pensar autossuficiente.

Lembro das palavras do super-apóstolo Paulo. "Quando sou fraco, então é que sou forte". Em carta à igreja de Corinto,  lista as dificuldades pelas quais passou, incluindo um "espinho na carne" que o levou a pensar no assunto. E, por tabela, mostrando que a soberba é sempre um tiro no pé, e de olhos fechados.

Com a deixa de seus percalços, Paulo fala da graça de Deus. Graça: favor que não merecemos, mas que nos é concedido "de grátis" por Ele. Mas por quê? Ora, não tem explicação. É um favor, de graça, e ainda tem que justificar?

Paulo ao menos expõe um raciocínio: Deus explica o espinho na carne. "A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza". Então o apóstolo diz que sente prazer na fraqueza, para que possa saborear essa graça de Deus na sua vida. Enxergar as limitações significa se dar conta dessa Presença.

Prazer na fraqueza? Não é bem uma fruição, tampouco masoquismo. Porém se dar conta de que ser limitado não é o fim, mas o começo de uma nova perspectiva, tão palpável quanto a fé pode proporcionar... Se não me sentisse fraco, a solidão raivosa seria o meu pior castigo.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

As lições da licença - parte 2

Se por um lado ficar no estaleiro por dois meses me trouxe reflexões socio-políticas, por outro me ajudou a enxergar a loucura do cotidiano com muita sanidade. Determinadas atitudes que fui forçado a encampar enquanto machucado valeram como um retiro quase espiritual.

Com o gesso e duas muletas - era proibido pisar com o pé ruim - a tarefa de me levantar da cama ou do sofá passava longe de ser das mais simples. Requeria força para me sustentar desde o primeiro impulso. E muita disposição para levar a cabo o que eu tinha em mente. A única opção era ser perseverante naquele objetivo, ainda que não estivesse nas condições ideais, ou então não sairia do lugar.

Percebi também que era uma roubada completa retornar à cama e ter esquecido alguma coisa, ou de fazer algo. O cansaço dificultava que eu levantasse novamente. Precisei incorporar um detalhado planejamento de tudo o que precisava fazer antes de começar a saga. Isso valeu até para voltar a andar na rua. Mochila nas costas, muleta na mão e um árduo percurso entre o banco, o metrô, o médico e muito, muito suor. Deixar uma etapa de lado era um dia perdido.

Retornei ao trabalho, com as responsabilidades que me cabem e a restrição de horários: resolver coisas e pagar contas, só na hora do almoço ou à noite. E não tem como voltarmos nos mesmo ritmo. Fora as informações nas quais é preciso ser atualizado, saí de um estado de letargia que meus colegas não passaram nos últimos meses.

Mas é incrível como a inércia é um princípio da Física que se aplica ao nosso estado emocional. Lembra quando estamos no ônibus, ele dá uma freada e você continua na velocidade anterior, quase batendo o seu nariz no banco da frente?

Assim acontece no cotidiano. A gente entra na onda de um monte de pseudo-urgências, encara uma sequência de tarefinhas como uma epopéia em que está em jogo nosso sucesso, vê monstros que na verdade não passam de uma revoada de insetos mesquinhos... Peraí, é isso que me tira o sono tantas vezes durante o ano?

A inércia também me possibilitou perceber essas coisas porque o meu "ônibus" estava avariado por dois meses, e agora retorna ao tráfego em câmera lenta, reparando em todos os seus exageros. O esforço para não reforçar o quadro se renova. Bom mesmo é não exagerar na dose.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

As lições da licença - parte 1

Enfim minha licença médica chegou ao fim! Agora a tarefa é me readaptar ao cotidiano de trabalho e regular o zoneado relógio biológico. Sim, pois o sono resolve dar as caras quando menos espero. Ele estava acostumado a mandar em mim até altas horas da manhã e agora estranha o domesticamento.

Acho que só agora, depois de dois meses de stand-by, consigo encontrar respostas para o que minha mãe me perguntou durante esse período: "Já dá pra tirar um saldo positivo dessa situação?". Se não fosse minha genitora expressando sua preocupação, teria julgado a pergunta um tanto sarcástica. Eu não conseguia, naquele momento, ver propósito nenhum na fratura cacete de um metatarso, que tanta imobilidade me causava.

Hoje percebo quais foram as lições que a licença me deixou. A principal delas foi perceber como nosso mundo não está preparado para inserir os portadores de necessidades especiais. E me remeteu a um projeto de lei de um senador da república.

As calçadas esburacadas passam despercebidas para quem anda em sua plenitude física. Mas são um suplício para quem não pode pensar num mínimo tropeço, sob pena de dar com a cara no chão. A falta de rampas transforma o meio-fio num degrau potencialmente traiçoeiro. Estações de metrô sem escada rolante são um exercício de paciência. Subia muleta por muleta num desenho lógico.

Do alto de meus 29 anos, fiquei imaginando idosos ou demais portadores de necessidades especiais sem força nos braços para vencer essas dificuldades. A disposição necessária para fazer as coisas mais simples do cotidiano, e ainda contar com a compreensão dos demais. Pegar um ônibus, dependendo do motorista, é um esporte radical.

Na minha cabeça, assim como no atendimento ao público, pensava: todo mundo tinha que passar por isso um dia. É uma experiência que cauteriza a sensibilidade para a questão no mais tacanho dos cidadãos. Daí para imaginar que nossos políticos precisavam de um "estágio" assim foi um pulo...

Então lembrei do senador Cristovam Buarque. Obcecado pela educação, o parlamentar do Distrito Federal apresentou no ano passado um projeto de lei que obriga os filhos de autoridades eleitas pelo voto a estudarem em escola pública. O objetivo, claro, é fazer os responsáveis pelo país sentirem na pele a realidade do ensino público brasileiro. Uma vez provado esse gostinho, é possível que cuidem melhor de nossas escolas e professores.

Apliquei o mesmo princípio à minha situação. Nossos representantes deveriam ficar uns dois meses em cadeiras de rodas pra perceber as dificuldades que um portador de necessidade especial encara todo dia. Talvez assim pensassem numa política de acessibilidade total ousada na medida que deve ser. E com a prioridade que os portadores merecem, em vez de ficarem esperando migalhas filantrópicas ou interesseiras.

Pode ser otimismo demais da minha parte esperar que a insensibilidade política seja quebrada assim tão simples. Certo é que um metatarso me ajudou a enxergar melhor a questão, provocando o desejo de ajudar. Já começo por essas linhas, esperando combater a indiferença de quem, como eu, não costuma passar por privação física.

(Foto: Nelson Perez / Divulgação)