domingo, 9 de agosto de 2020

Bandeirada

Um dia esse dia ia chegar. O dia que dizem ser nosso, mas sem um de nós aqui. Um dia que ninguém prevê ou quer chegar perto disso. Mas sabendo ser possível.

“Eu já estou no fim da linha, me preocupo com vocês que são jovens, com a Elisa, que vão ter que aturar tudo isso”. Era sua frase oficial ao término de qualquer papo sobre a politicagem brasileira. Instantaneamente rejeitávamos esse seu vaticínio em vida, que fim o que, para de falar isso.

Talvez fosse uma forma de lidar com essa certeza que nos acompanha. O vislumbre de que o que você podia ter feito, do jeito que pensou ser o certo a fazer, já tinha sido cumprido. Você, o homem urbano da roça, pois não saía de sua casa pra quase nada, quando muito para os arredores. (E quando menos do que gostaríamos, para a nossa casa).

Não consegui escrever em novembro do ano passado. Não consigo escrever agora. Não sei que forças levam meus dedos às teclas nessa madrugada, e desisti de querer saber. Me deixo levar, como ambos fizemos em determinado período de nossas vidas.

Porque em dado momento, como uma anistia ampla geral e irrestrita, deixamos muita coisa pra trás em busca de construir um novo presente, gestando novos futuros. Sem combinarmos, conseguimos viver o que há muito não vivíamos ou não tínhamos vivido o suficiente.

Ayrton Senna ultrapassava 15 carros para seu primeiro título no Japão e eu deitado em seu colo. Sua calejada mão à frente de meus olhos checava se eu havia adormecido. Vi três de seus dedos, deixei de assistir à corrida por alguns instantes, mas não reclamei. Algumas voltas depois você fez o mesmo, e aí sim afastei sua mão. Você ficou sem entender, eu havia dormido e depois acordado? E como eu ia explicar por que não reagi antes? Ficamos assim.

Muitas longas voltas de inúmeros circuitos se deram até que estivéssemos da mesma altura, sentados lado a lado, enquanto eu me sentia milionário, tendo comprado os ingressos mais caros de qualquer pista. Pois ver com você qualquer esporte de velocidade era estar ao lado dos mecânicos, na cabine de transmissão, na cabeça dos pilotos.

Queria que nosso hodômetro tivesse chegado a marcações bem maiores. Mesmo quando resolvemos correr juntos na Quinta da Boa Vista, não consegui te acompanhar. E pouco tempo depois, sua panturrilha se aposentou.

Ainda assim, as pistas sempre deram um jeito de nos conectar. Fazíamos do WhatsApp e do telefone “segundas telas” a cada GP de motovelocidade. Fomos ao cinema para ver “Rush” e um documentário sobre Senna. O tricampeão, seu ídolo, ainda nos juntou em exposições aqui e ali, em reprises de suas vitórias. Mas faltava a cereja do bolo.

Até 2015. O ano em que fomos juntos a um Grande Prêmio Brasil de Fórmula 1.

Deixamos Rio de Janeiro, famílias, problemas, trabalhos, chefes, aporrinhações, todos em segundo plano. Desde nosso encontro no aeroporto Santos Dumont, dividimos um cockpit onde não cabia mais ninguém e mais nada. Ouvi suas besteiras muito politicamente incorretas numa vergonha dos outros passageiros também ouvirem, misturada à alegria de poder sentir aquilo porque com você, porque perto, porque nosso.

O pequeno quarto do Ibis Budget na Consolação com a Paulista era a sua cara: só dava pro básico, sem exageros - ou “frescuras”, como você dizia. A pé seguimos para uma cantina italiana no Bexiga. Acho que pela primeira vez bebemos vinho juntos, comemos as entradas e uma bela lasanha, e te vi muito feliz por canções de antigamente serem entoadas com pompa, sabendo que eu jamais te zoaria pela breguice. Não nessa hora, não nesse dia.

Voltamos ouvindo os trovões e, sem guarda-chuva e já no meio do caminho, resolvemos retomar aquela que seria nossa última corrida juntos. Em menos de cinco minutos estávamos completamente ensopados, e seguimos pingando o chão do elevador e do corredor de nosso quarto. O que via de regra a gente classifica como uma verdadeira roubada ganhou ares de aventura de dupla dinâmica de filme de ação. Daqueles que você sempre adorou.

Pegamos o metrô, vimos a imensa fila para trocar ingressos, todo o entorno do autódromo respirando o GP, e ambos nos sentindo muito à vontade, vendo tantos outros pais e filhos, como que confirmando que não havia outra opção disponível no universo para nós naquela data.

Como eram os ingressos mais baratos, sentamos em meio aos torcedores mais arruaceiros, para os quais a corrida era mero pretexto para começar a beber desde 7h da manhã e nem precisar entender o que estava acontecendo na pista. Recebemos alguns respingos (de cerveja, graças a Deus), esquecemos nossos protetores solares, vimos algumas ultrapassagens na curva bem à nossa frente, e você confirmou que ver pela televisão era muito melhor. E tal afirmação não ameaçava em nada minha sensação do que havia ocorrido nesse fim de semana: a de que estar ao vivo com você sempre foi melhor do que mediado pela tecnologia.

Peço silenciosamente que meus dedos continuem esse texto. Vejo novamente os seus à minha frente, checando se ainda estou desperto, atento, focado. Não estou, pai. Nada satisfeito com o desfecho antecipado, com a distância maior que a desejada em seus últimos anos por aqui, com sua volta final.

A caneca do Flamengo que você me deu, antiflamenguista que é, permanece vazia. Das poucas vezes que tentei usá-la, desisti. Só tive forças para um beijo na porcelana antes de recolocar no armário.

Hoje sou o que você foi pra mim. O dia é nosso, como nosso foi aquele fim de semana e tantos outros encontros nos quais os laços de afeto ganharam nós de marinheiro bem fortes. Brigo com sua ausência e vejo nisso um certificado de que chegamos a um termo em que fomos pai e filho, conforme as condições externas e internas de cada um nos possibilitaram.

E é por tudo isso que jamais vou afastar sua mão de meus olhos.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Quanta luz

Eu tenho absoluta certeza que minhas melhores crônicas são as que escrevi sobre meu avô Nelson. Hoje ele faria 100 anos.

Mesmo que uma aura de crítico literário tomasse conta de mim e enquadrasse meus textos sobre meu avô – ou a partir dele – nada mudaria minha opinião fundamentalmente sentimental.

Se há quem possa ser classificado como morto-vivo ou morto em vida, meu avô era exatamente o contrário e continua a ser.

Porque eu posso dizer que sinto saudade dele desde novembro de 2002. Mas estaria mentindo se dissesse que ele não está presente comigo de várias formas, todos os dias.

Veja, com todo o respeito a quem assim crê, não estou falando de misticismo, reencarnações ou aparições. A presença de meu avô Nelson é na forma mais material dos conceitos, do jeito mais conceitual que a matéria jamais poderia ser.

A cada toque de bola de qualquer Flamengo desde que me entendo como torcedor, ali está meu avô comigo. Do mesmo jeito que me levava à Gávea para ver os treinamentos, ao contato com os jogadores após o treino, a conhecer ex-jogadores de tempos áureos do clube. No dia 29 de junho de 1958 meu avô ganhou de aniversário uma Copa do Mundo – sorte da Copa do Mundo.

Em cada momento de estudo ali está meu avô acolhendo quem um dia morreu de vergonha de dar a notícia que havia repetido a 7ª série. Um neto que esperava um olhar de decepção de quem tanto investira na sua educação e ouviu: “Você não caiu. Só tropeçou”. Essa história está na minha dissertação de mestrado.

A cada ônibus cheio que pego ali está meu avô entrando pela frente. E, ao final de um assalto em que ele seria a última vítima do meliante que vinha lá de trás, mandando um “Ué, de novo?”, desconcertando o malfeitor e salvando seus pertences.

E tantas outras memórias que são e não são dignas de serem classificadas como tal. Memórias sim, pois fazem parte de um passado que não se materializará novamente, deitam na caminha das lembranças e nevam sobre mim mesmo fora da estação.

Mas deixam de ser memórias diante dessa “presença-ausente” , como um holograma com alma que não está aqui na minha frente mas está bem diante do meu nariz - e na geologia do meu coração.

Esse texto fluiu para que a data memorável não passasse em branco por meus dedos no teclado. Canalizou a corrente de ar cósmica que trouxe a barba por fazer coçando meu braço, o cabelo que me fazia pensar quem plantou algodão na cabeça de um senhor, a piteira velha de um cigarro barato com cheiro forte (pois barato) do qual eu queria (?) ficar longe, a catarata de carinho que saiu desaguando morro abaixo e já chegou até na Elisa.

Cem mais para o momento, vô.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Athos Bulcão e o impacto da arte

Minha conexão com a cidade de Brasília foi tão afetiva quanto inesperada.

Fora as obras de Oscar Niemeyer, o que me impactou também foi o trabalho dos artistas que o arquiteto trouxe consigo. Dentre eles, Athos Bulcão. A principal referência são azulejos que formam painéis geométricos e combinados com poucas cores. Você provavelmente já viu um desses durante o noticiário político cotidiano. Nos corredores da Câmara dos Deputados, por exemplo, servindo de cenário para o trabalho de jornalistas entrevistando deputados e cobrindo o Congresso. Mas os azulejos de Bulcão estão em outros pontos da cidade, de prédios públicos a privados e estações de metrô.

Eis que o centenário do artista não passou em branco aqui no Rio. O Centro Cultural Banco do Brasil resolveu fazer uma exposição e eu não poderia deixar de ir. Almocei rápido, me escondi da opressão solar do calor carioca, peguei o VLT até a Candelária e desembarquei ao lado do CCBB.

Apesar dos azulejos famosos, Athos Bulcão também produziu colagens fotográficas, algumas esculturas e também pinturas. Inúmeros quadros em uma sala só para eles, mas um deles me capturou. E eu não sei dizer por quê.

Era um pequeno apresentando quadrados de um lado, tal um tabuleiro de xadrez colorido, e pequenos pontinhos aglomerados do outro. Apesar de assistir à exposição mais rápido do que gostaria (afinal, hora de almoço), parei em frente ao quadrinho. E tomei apenas uma decisão: me deixar levar. Tal um participante de rafting que desistiu de se preocupar com os trancos da corredeira.

Não quis entender o quadro. Despi-me de qualquer ameaça de curiosidade em saber o que o artista quis dizer com a pintura. Também desisti de acessar qualquer mínimo conhecimento sobre o estilo ou as influências de Bulcão. Apenas me voluntariei para um quase hipnotismo, posto que ainda consciente de minhas decisões e de tudo o que estava acontecendo.

Não meditei. Não me distraí. Alentei a pressa. Fiz-me inteiro na ação de fruir da arte com o mínimo objetivo de ir percebendo os efeitos daquilo em mim.

É difícil explicar. Não senti nada místico, mas a certeza de algo que só o encontro com a arte pode proporcionar. O resultado em mim não era nada utilitário (“pra que vai me servir?”) nem superficial (“matei o tempo de um jeito bacana”). Sei que entrei e saí daquele quadro diversas vezes, estive no ateliê do artista, passeei por todo meu background cultural, fui invadido por desconhecidas sensações - sem necessariamente estar ciente de cada um desses processos. A arte me chamou pra dançar e sussurrou no meu ouvido: “É bom, né?”.

O quadrinho de Athos Bulcão endireitou minhas veredas. Eu, que busco funcionalidade e pragmatismo em tantos livros, filmes e exposições, fui exposto à minha própria mesquinharia inconsciente. Por que não se entregar à arte pela arte, jogando-se de olhos abertos no abismo da fruição desconhecida? Esquecer o conceito de espaço e suas limitações, sobrepujar a pseudo-tirania do tempo. Entrar na dimensão da obra de arte e ser alvo de seus cavalares feixes de oxigenação. O mundo é o mesmo após uma experiência dessas?

Provavelmente sim, mas não o meu.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Terceira Primeira

O coronavírus é a guerra mundial da minha geração.

Após a Guerra Fria, com vários países possuindo seu arsenalzinho ou arsenalzão nuclear, houve um sossegamento geral. Os conflitos tornaram-se localizados e pontuais, com mais jeito de fervura em banho maria do que incêndio generalizado. Uma guerra total de boa parte do mundo contra boa parte do mundo – como ocorreu em 1914 e 1939 – parece descartada.

Tudo o que conhecemos desses acontecimentos veio dos livros e filmes (tendenciosos ou não) contando a História. E de depoimentos (tendenciosos ou não) de quem viveu tudo aquilo, pelos mais diversos pontos de vista. É claro que populações que vivem em zonas de conflito atuais (quintais das grandes potências) ainda têm essa experiência, infelizmente. Mas, também infelizmente, o mundo não para por esses conflitos – ao contrário da pandemia.

Se a partir dos anos 1990 uma integração muito mais profunda que a do começo do século XX foi aditivada - novamente graças às tecnologias de comunicação e transportes, só que bem mais intensa e bem mais veloz – uma das contas chegou agora. Nenhum de nós está imune aos efeitos e notícias do vírus pelo mundo.

Assim como numa guerra mundial, famílias estão separadas umas das outras, há soldados na linha de frente, fronteiras sendo fechadas, economia global em jogo, relações internacionais ainda mais esquisitas. E tudo servindo de pretexto para se realizarem desejos autoritários, xenófobos e eugênicos de toda ordem.

E mortes. E líderes insensíveis às mortes. Que não são monstros quixotescos, mas possuem seu exército de defensores, alguns bem fanáticos quanto ao que aquele líder encaminha, mesmo que sejam destinos loucos e sepulcrais. Apoiadores oficiais, outros ideológicos, cada um em sua trincheira ignorando os apelos de paz e direitos humanos. Uma guerra sem convenções de Genebra como contrapeso mínimo, mesmo em estado de guerra.

E há os que faturam com tudo isso. Que sequer enrubescem por não querer perder dinheiro (que já lhe sobra) enquanto tantos sequer podem visitar ou enterrar seus doentes. O cinismo em carne viva, sem pudores e banhado em justificativas injustificáveis.

E também a sensação de que não sabemos quando tudo isso vai acabar. Ou como voltaremos à “normalidade” de antes. Sabendo que não seremos os mesmos após esse acontecimento, que dirá a política, a economia, as relações. Mas aprendendo a aceitar e conviver com as restrições, os racionamentos físicos e emocionais, e a condição humanoide que cada vez mais nos envergonha. Afinal, o vírus foi o teste surpresa enquanto procrastinávamos estudar pro aquecimento global.

É a minha guerra. E há momentos em que o vírus parece o mais inofensivo dos meus inimigos.

Como viver durante uma guerra? Como aceitar o estado de guerra? Como conviver com a imprevisibilidade do desfecho aceitável? Como resistir? Como resistir à impulsividade de resistir de todo e qualquer modo, arriscando muito sem estratégia? Que “novo-velho” normal é esse, e como degluti-lo de forma a prosseguir com o sopro de vida? O que minha filha espera de mim? Como não me cobrar além das minhas possibilidades? Quais são as minhas possibilidades?

É o que tenho buscado saber. Resgatando leituras, relatos e informações do tempo dos grandes eventos do século XX citados acima. Perguntas cuja honestidade para comigo mesmo aquece como fogueira em meio à noite passada no deserto. Quem mais estará em volta dela?

domingo, 19 de abril de 2020

Uma rua, os afetos

Faço 40 anos em setembro e meu sonho de princesa era uma viagem a Liverpool para comemorar. A cidade inglesa é para os beatlemaníacos o que Meca é para os muçulmanos: sonhamos em fazer ao menos uma peregrinação à terra santa. Se o ímpeto de visitar a cidade arrefece por fatores externos (o corona, ou pior, o câmbio) há uma música que ressuscita viagramente o desejo: Penny Lane.

Penny Lane é uma rua de Liverpool e a canção, uma crônica de Paul e John sobre sua rotina suburbana em calçadas nas quais sempre passavam. Falam da barbearia, do banqueiro (agiota?) na esquina, das pessoas cumprimentando-se, crianças brincando. No refrão que nos eleva, os compositores dizem que “Penny Lane está em meus ouvidos e em meus olhos”.

Mesmo quem não curte Beatles ou rock n’roll tem sua Penny Lane no coração. Um local (ou mais) cheio de significados, lembranças e sentidos que nos acompanham até o fim dos dias. Casa, bairro, cidade, quintal, sítio, vila, condomínio ou rua que ao serem descritos trazem coisas tão banais quanto universais para quem escuta e assente com a cabeça dizendo “sei bem como é”, mesmo sem nunca ter pisado no lugar relatado.

Para que estabelecimentos de concreto, asfalto e desconhecidos (ou conhecidos de longe, ainda que estando perto) não saiam de olhos e ouvidos, muito se houve naquele perímetro. Primeiros ou últimos amores, amizades inquestionáveis até segunda ordem da maturidade, pedacinhos de emoções em caráter de realidade e promessa. Se a memória é seletiva, sua alma não é de gelo.

O ritmo da canção é o de alguém narrando com alegria o que viveu. A harmonia musical, em certo momento, exige que se aumente o volume da voz durante os refrões. Os então garotos de Liverpool deixam claro, em alto e bom (muito bom!) som, que ninguém vai tirar Penny Lane deles, jamais.

E nos empolgamos com essa alegria, revisitando nossa história como quem aparece de repente num asilo longínquo e escondido. E sorrimos como quaisquer dos seus habitantes o fariam, até esquecermos se acabamos de chegar ou se já estávamos ali e recebemos uma visita inesperada.

domingo, 12 de abril de 2020

Passagem

Há alegria no pesadelo. Muita. Emerge concentrada ao percebermos que ele acabou. A taquicardia, a ansiedade, o medo de se ver encarcerado naquele simulacro sinistro ainda ressoam no ambiente do quarto. Mas o processo de alívio já se inicia. Era apenas um sonho ruim.

Durante o pesadelo vivemos uma realidade esquisita. Sentimos tudo aquilo sem a certeza de onde veio e pra onde vai. Um real pastoso cuja tônica é o mal-estar. A sensação de ser parte, sabe-se lá até quando, do elenco de Caverna do Dragão. E sem avistar Mestre dos Magos.

Há quem lembre em detalhes de seus pesadelos. Há quem dê graças por esquecerem a trama ao acordar. Porém tanto aqueles como estes mantêm comunhão quanto à recente experiência ruim no trem do sono, que parecia nunca chegar à estação final.

Ninguém deseja ter pesadelos, ou se planeja para tal. Flagramo-nos  inconscientemente neles, e mesmo nesse estado é possível maldizer a hora em que pegamos no sono. Somente o final da incômoda caça ao tesouro ativará o controle remoto interno das pálpebras, enfim.

A única certeza que se tem durante um pesadelo é que ele tem que acabar. Seja o que for que tenha causado aquilo, bem como a dúvida do que virá depois, nada tira de nós a vontade máxima de passar logo por tudo e despertar.

Que acabe. Logo. A manhã, essa esfuziante redentora, não se cansa de nos esperar.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Das formas de ler

Cada um com seu cada qual, com seus hábitos e os modos de exercê-los. Como se lê?

Gosto de ler em trânsito, porém restrito à estabilidade dos trilhos. Tentar ler dentro de um carro ou do ônibus me leva à dor de cabeça e ao receio de um descolamento de retina. E assim, a futuras dores de cabeça. (Bem maiores do que a que estou tendo agora: afinal, é descolamento ou deslocamento de retina? Já chequei a resposta, não gravei e fiquei eternamente preso nesse looping morfológico.)

As leituras no metrô ganharam concorrência brutal dos podcasts. Ambos disputam  sinestesicamente se mais vale ouvir do que correr os olhos da esquerda para a direita. A leitura é dos extremos: fala grosso como um conservador que exige o respeito às tradições, e também feito criança que reitera seu lugar gritando “cheguei primeiro!”. O adolescente podcast dá de ombros e continua blasé, sem querer tentar entender as demais gerações.

A rede na varanda também viria a ser habitat de leituras específicas, como a gigantosa revista Piauí. Até então pensava em usar a herança indígena apenas para exercer o sagrado direito universal da soneca pós-almoço. Mas deitar e deixar cotovelos e olhos fazerem o único esforço necessário revelou-se a melhor forma de ler, ao menos pra mim.

Assim redescobri um dos grandes prazeres da vida: cair no sono com óculos ao rosto e livro (ou revista, ou e-book) repousando sobre o tórax. Traduz a despreocupação que almejamos ter em vida. Antes da obrigação de deixar as coisas nos seus devidos lugares (no móvel do quarto ou em alguma gaveta), o prazer de se deixar levar pelo prazer. No caso, pela leitura rumo ao sono. Livro aberto no peito é atestado de carpe diem.

É curioso, pois inicio o processo cheio de vontade de ler e muito me satisfaço com o fato de não ter avançado tanto e estar sonhando. Acordar sem miopia recebendo um pequeno abraço em papel de boa gramatura é recompensador. A leitura, dessa vez, não fica enciumada. Sabe que o sono é pura biologia que recebeu uma senhora ajuda. Percebe que o sagrado direito universal é seu aliado de longo prazo: mente descansada, oficina literária.

Em tempos de quarentena, também reaprendo que ler é a forma mais eficaz de se ir longe sem sair do lugar. E descanso.