segunda-feira, 29 de junho de 2020

Quanta luz

Eu tenho absoluta certeza que minhas melhores crônicas são as que escrevi sobre meu avô Nelson. Hoje ele faria 100 anos.

Mesmo que uma aura de crítico literário tomasse conta de mim e enquadrasse meus textos sobre meu avô – ou a partir dele – nada mudaria minha opinião fundamentalmente sentimental.

Se há quem possa ser classificado como morto-vivo ou morto em vida, meu avô era exatamente o contrário e continua a ser.

Porque eu posso dizer que sinto saudade dele desde novembro de 2002. Mas estaria mentindo se dissesse que ele não está presente comigo de várias formas, todos os dias.

Veja, com todo o respeito a quem assim crê, não estou falando de misticismo, reencarnações ou aparições. A presença de meu avô Nelson é na forma mais material dos conceitos, do jeito mais conceitual que a matéria jamais poderia ser.

A cada toque de bola de qualquer Flamengo desde que me entendo como torcedor, ali está meu avô comigo. Do mesmo jeito que me levava à Gávea para ver os treinamentos, ao contato com os jogadores após o treino, a conhecer ex-jogadores de tempos áureos do clube. No dia 29 de junho de 1958 meu avô ganhou de aniversário uma Copa do Mundo – sorte da Copa do Mundo.

Em cada momento de estudo ali está meu avô acolhendo quem um dia morreu de vergonha de dar a notícia que havia repetido a 7ª série. Um neto que esperava um olhar de decepção de quem tanto investira na sua educação e ouviu: “Você não caiu. Só tropeçou”. Essa história está na minha dissertação de mestrado.

A cada ônibus cheio que pego ali está meu avô entrando pela frente. E, ao final de um assalto em que ele seria a última vítima do meliante que vinha lá de trás, mandando um “Ué, de novo?”, desconcertando o malfeitor e salvando seus pertences.

E tantas outras memórias que são e não são dignas de serem classificadas como tal. Memórias sim, pois fazem parte de um passado que não se materializará novamente, deitam na caminha das lembranças e nevam sobre mim mesmo fora da estação.

Mas deixam de ser memórias diante dessa “presença-ausente” , como um holograma com alma que não está aqui na minha frente mas está bem diante do meu nariz - e na geologia do meu coração.

Esse texto fluiu para que a data memorável não passasse em branco por meus dedos no teclado. Canalizou a corrente de ar cósmica que trouxe a barba por fazer coçando meu braço, o cabelo que me fazia pensar quem plantou algodão na cabeça de um senhor, a piteira velha de um cigarro barato com cheiro forte (pois barato) do qual eu queria (?) ficar longe, a catarata de carinho que saiu desaguando morro abaixo e já chegou até na Elisa.

Cem mais para o momento, vô.