sábado, 29 de novembro de 2003

Meu avô e Ary Barroso

Quem teve a oportunidade de estudar História da Comunicação teve conhecimento das sociedades pré-escrita, ou sociedades orais. É tão difícil para nós hoje pensarmos que existiu uma sociedade assim, não é? Sem leitura ou anotações em papéis, coisa tão vital pra gente. Fiquei mais "encucado" foi com a questão da memória histórica. Se não havia registro, como os mais novos saberiam de suas origens, de seus ancestrais? E se assim era, como hoje sabemos que as sociedades orais existiram?

Os anciãos das tribos eram os responsáveis pela manutenção dessa memória. Por haverem presenciado os eventos - ou, ainda jovens, ouvido de outros anciãos da época - repetiam diariamente, várias vezes, a trajetória de seu clã para os mais novos. E isso era tão forte que em pleno começo de século XX tais sociedades ainda existiam, bem como sua prática. Assim, os antropólogos de nosso tempo tiveram contato com os pré-escrita e, em tempos de escrita consolidada, nos transmitiram o conhecimento que hoje acessamos em História da Comunicação.

Tudo isso me veio à mente ao ouvir um programa em homenagem ao centenário de Ary Barroso, no dia 7 desse mês. (Não é muito difícil concluirmos que o rádio, hoje, é o meio de comunicação mais próximo da prática de memória das sociedades orais). E naquele programa o jornalista Luiz Mendes (um ancião repórter de rádio) narrou vários episódios da vida do amigo e colega de trabalho Ary Barroso.

Falou que Ary era flamenguista doente, e não escondia isso nas narrações dos jogos; que, por não possuir voz potente como os demais radialistas, na hora do gol tocava uma gaita em vez de gritar; que, mesmo sendo mineiro de Ubá, foi o maior propagandista da Bahia e do carnaval brasileiro no mundo - vide "Aquarela do Brasil". E outras histórias.

Acontece que tudo o que Luiz Mendes disse, eu em meus singelos 23 anos já sabia. Isso porque meu avô, desde minha adolescência, encarregou-se de me contar, repetindo diariamente e várias vezes, as histórias de Ary Barroso. Ele fazia isso com diversos assuntos, desde que lesse ou visse algo que o lembraria de determinado episódio que viveu ou testemunhou. Sim, meu avô era a sociedade oral encarnada. Ali, do meu lado, estava parte da História da Comunicação resumida em 82 anos.

Os motivos pelos quais ele tanto me contava e recontava as histórias são vários. É certo que, em determinada idade e dependendo do temperamento da pessoa, ela vai falar apenas de fatos passados, pois a expectativa de realizar coisas novas é remota. Se viveu eventos além do normal, mais ainda. E meu avô, marinheiro sobrevivente de um incêndio em um navio e ex-combatente da 2ª Guerra Mundial, dentre outras coisas, ficava à vontade para falar de seu tempo. Diante de um ouvido atento e amoroso como o meu, imaginem.

Deixei para escrever este artigo hoje, dia 29, por fazer um ano que meu avô nos deixou. Mas se sua presença física já não é possível, o adjetivo inesquecível cabe aqui. Não só pela afeição saudosa como pelas narrações pessoais que perpassam o tempo. Como os guardiães da memória nas sociedades orais. Ironicamente, eu, leitor voraz e tentando realizar minha vocação para a escrita, agradeço a Deus por ter "viajado no tempo" e conhecido melhor do que ninguém as origens da comunicação entrecruzando-se com minhas próprias origens.

Por meio de meu avô sinto saudade de um tempo que, mesmo não tendo vivido, vivi. Uma "saudade misturada", sentindo falta de um ente querido e de um passado distante. Subitamente, as letras não fazem mais sentido. E nem me importo.

quinta-feira, 27 de novembro de 2003

O tumulto é do cinismo

A grita foi geral, e dessa vez não apenas na mídia. Tudo começou (de novo) numa batalha campal entre Guarda Municipal (GM) e camelôs no abarrotado Centro do Rio de Janeiro. A construção do discurso emburrecedor tem como agentes a cobertura jornalística e seu público-alvo (ativamente, incentivando e produzindo as reportagens) e as autoridades responsáveis - de forma omissa, coniventes e fomentando a discussão de acordo com suas conveniências.

Ok, dessa vez os camelôs é que se prepararam pra briga, e a começaram ao atacar um carro da fiscalização da Prefeitura (aquele flamejante embaixo do termômetro a 130 graus). O resto foi a reação da GM com todo o seu aparato de guerra - e finalmente ela chegou, não era pra isso que servia? Os camelôs com seus morteiros, côcos e cadeiras; a Guarda com capacetes, escudos de choque, cacetetes e bombas de gás lacrimogêneo. Dá pra imaginar que fim levou, né?

Só que o RJTV da noite inaugurou o discurso que iria predominar na mídia. Anunciando a guerra ocorrida no Centro, mostra as imagens dos guardas sendo atingidos pelos côcos; as cadeiras espalhadas em meio à Av. Pres. Vargas ao meio-dia, "trazendo transtornos". A imagem de um guarda com a mão à boca e o âncora narrando que "um guarda ficou ferido". Ao fim da matéria, um pronunciamento oficial de César Maia dizendo que o Estado é que não enviou reforços da PM ao local; outro de Garotinho, rebatendo as críticas do prefeito, dizendo que a truculência não deveria ser usada, mas sim responsabilidade no tratar com os camelôs.

As perguntas vão surgindo: quem envia a Guarda Municipal para "combater" os camelôs em pleno Centro da cidade durante o dia, com milhares de transeuntes pra lá e pra cá? A Prefeitura. Quem não envia a Guarda Municipal às 6 da manhã para impedir que os camelôs montem suas barracas (já que é essa a questão legal)? A Prefeitura. Quem é um dos principais responsáveis pela porradaria no Centro do Rio, independentemente da situação ilegal dos camelôs? A Prefeitura. Fato. E ainda queria o reforço da PM!

Questiona-se esse lado da questão nos jornais? Não.

Os camelôs sempre foram "soldados de guerra" com estratégias, como ontem? Não. Como todo mundo sabe, violência chama violência. E sua escalada no confronto GM x ambulantes foi gradativa - sendo que bate mais forte (e primeiro) quem está mais preparado pra isso. Quem trabalha no Centro acompanhou essa gradação de perto, desde o início.

Questiona-se esse histórico da questão nos jornais? Não.

O governador do Estado adverte que deve ser usada de responsabilidade para tratar da questão dos camelôs, mas sem truculência. Irônico, vindo de quem vem. Até parece que a carreira político-administrativa de Garotinho foi construída assim, com serenidade e pensando nas conseqüências de seus atos e palavras no calor da hora. Se fosse prefeito, nada leva a crer que Garotinho agiria diferente.

E as primeiras páginas de hoje mostram os prejuízos do comércio e da Prefeitura, exibe fotos dos Guardas Municipais com as "armas" dos camelôs (talvez um côco seja mais destruidor que uma bomba de gás lacrimogêneo, quem sabe?). O dia finda com a sensação que os camelôs merecem mesmo é a pena de morte por não nos deixar em paz, atrapalhar-nos na calçada e irritar as autoridades responsáveis.

Questiona-se o que está sendo feito para resolver a situação dos camelôs? Não. O porque de tantos permanecerem ilegais? Não. Além de fiscalizar e descer o cacete, o que mais a Prefeitura tem feito para RESOLVER essa situação e aí sim servir à população? Não sei, não se fala disso. Quem vai incomodar o nosso herói do Pan 2007 e das quase Olimpíadas-2012?

É muito cinismo de uma vez só. Da mídia, dos governantes, da classe média conivente com a violência na medida que lhe convém (no caso, expulsar camelôs mas sem maiores drasticidades). E é daí que surge o tumultuado desmando da segurança no Rio. Tratando a população como idiota.