domingo, 31 de dezembro de 2006


Eu quero um jornalismo melhor

Cheguei à sala de meu amigo André Mello com a cara de quem acabara de escrever o artigo abaixo ("Eu sou do Rio de Janeiro" - de fato, eu tinha acabado de escrever). Triste por ver o Rio sitiado novamente e um pouco temeroso com minha volta pra casa. Não puxei uma cadeira, explicando que precisava encontrar minha irmã para irmos logo. Sem levantar, ele me pergunta:

- Por causa dos boatos?

Digo que sim, que a estação do metrô da Saens Peña estava fechada, e que eu estava meio nervoso com tudo aquilo. Ele me fala que, quanto às causas dos ataques criminosos à cidade, tudo parece ser reduzido a questões pontuais, como um descontentamento com o fim das regalias nas prisões, ou um alerta ao novo governo do estado.

- Nós sabemos que há algo maior por trás disso. É um discurso do medo construído na mídia que deixa as pessoas nesse estado de pânico.

- Calma aí, André. De ontem para hoje aconteceram ataques simultâneos em todas as partes da cidade.

- Eu andei por toda a cidade hoje e estou aqui.

- Eu também! Concordo que muitas vezes o discurso midiático insufla "ondas de terror" na população, mas agora são fatos: um ônibus foi incendiado na Avenida Brasil, pessoas morreram carbonizadas. Fora o que já te disse, ocorrências em toda a cidade, em vários pontos.

André não altera a entonação da voz e nem se levanta da cadeira. Mas não possui um ar cínico ou indiferente para com a situação, ou com meu relato. Jornalista, antropólogo e pastor presbiteriano, sabe que não pode jogar palavras vazias a seus interlocutores.

- Existem algumas coisas a serem consideradas no contexto do momento. Primeiro, há um vácuo de notícias, é uma semana tradicionalmente fraca pra isso. Depois, estamos no "limbo" entre governos estaduais: o comandante da polícia de agora não continua na segunda-feira, e o que vai assumir ainda não manda nada.

- É verdade. Ainda assim, André, os episódios de violência aconteceram.

- Sim, mas o que precisamos perceber é que a maioria das ocorrências não é inédita. A não ser o ônibus interestadual incendiado. É algo diferente, um ato de terror. Ainda assim, já houve um incêndio antes, só que o ônibus era intermunicipal (ele se refere ao ônibus 350, incendiado em Brás de Pina, em 2005. E outros foram incendiados sem vítimas, em alguns pontos da cidade e da Baixada Fluminense). Os tiros, assaltos, granadas, todos já ocorreram outras vezes na cidade do Rio de Janeiro. Se você pegar o jornal O Povo de manhã verá o que ocorre nas madrugadas toda semana, são episódios como esses.

- Mas a gente não pode banalizar os acontecimentos assim...

- Não é banalizar, não. Mas ninguém fala do pior: que a violência está imiscuída na nossa sociedade, e tão corriqueira que, aí sim, banalizamos ao não destacarmos esse aspecto. Por que surgem essas "ondas de terror" em todos os telejornais, de repente? Olha só...Você já leu esse livro aqui?

André pega de sua estante Cultura do Medo, de Barry Glassner, que fez uma ponta no documentário Tiros em Columbine, de Michael Moore. Na contracapa, as aspas do autor: "A TV não inventa o que mostra, mas escolhe o que mostrar". Na orelha do livro, outra frase: "A poluição é algo bem mais preocupante e perigoso que todas as outras coisas das quais a mídia insiste que tenhamos medo". É por aí que vai o pensamento de André. Em nenhum momento ele demonstra insensibilidade para com as pessoas que sofreram com os episódios de violência de ontem, pelo contrário: solidariza-se com aqueles que já sofreram antes mas que não ofereciam o Ibope que convinha - como numa última semana do ano, raquítica em notícias.

Imediatamente me lembrei que, em época de Copa do Mundo ou na semana do Carnaval, o Rio de Janeiro é a cidade mais pacífica do planeta. Nenhuma ocorrência violenta é noticiada.

- Precisamos nos preocupar com a situação dos presídios, por exemplo. Quem acha que a solução é lotar as penitenciárias ou reduzir a maioridade penal nunca esteve num presídio. A situação é tão caótica que daqui a um tempo as rebeliões e fugas em massa generalizadas não serão contidas. Aí sim teremos um terror incontrolável nas ruas. Como no exemplo da poluição, estamos muito pouco preocupados com o que realmente importa e pode causar transtornos da ordem social.

As políticas públicas que atendem mais aos sintomas da hora do pânico, em vez de agir na origem do problema: raramente sou "torpedeado" por notícias sobre isso.

A hora passa e eu realmente preciso ir. Levo emprestado o livro, e saio da sala de André mais calmo. Não menos preocupado com a violência urbana da metrópole, mas bem mais imune às "ondas de terror" de fermento midiático. Resolvo desligar a TV até o ano que vem.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2006



Eu sou do Rio de Janeiro

Do alto andar aonde trabalho sinto-me Robinson Crusoé. Uma vez cheguei mais tarde e, duas horas antes, quase em frente ao meu prédio, um passante foi baleado por estar perto de um assalto. Da janela deu pra ver o vermelho sangue. Centro do Rio de Janeiro.

Há duas semanas, a duas quadras de onde trabalho, um vigia do banco Itaú atirou numa pessoa que, parada na porta giratória, pareceu-lhe suspeito ladrão. Não era, mas morreu assim mesmo. Hoje, passando em frente à agência aonde aconteceu o episódio, vejo uma manifestação com cartazes dizendo que o tiro foi movido a racismo. E que o assassino está solto.

Ontem minha cidade foi alvo de estratégicos ataques terroristas nada preconceituosos: atingiram moradores da Zona Sul à Zona Norte, do outro lado da ponte Rio-Niterói e também visitantes de Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo. Destes, sete morreram queimados dentro de um ônibus recém-assaltado na Avenida Brasil e em seguida incendiado. Um policial que dava plantão numa cabine na Praia de Botafogo pela primeira vez morreu metralhado, além do ambulante que fazia ponto ao lado. Delegacias também foram atacadas, algumas com granadas.

Tenho um amigo de infância que hoje é policial, noivo de uma amiga que é de Cachoeiro do Itapemirim. Ele está de férias, ela estava em casa, eu estou em paz (agora).

Sinto-me Robinson Crusoé ao não ser atingido (diretamente) por nada disso, porém tudo acontecendo ao meu redor. Já andei muito pela Avenida Brasil, trabalhando ou chegando de viagem; já passei muito por portas giratórias dos bancos, já trabalhei quatro anos num deles; todo dia ando pelas inúmeras ruas do Centro; sempre vou ao Cinemark Botafogo; já peguei carona com meu amigo de infância, voltando do futebol.

Sinto-me Robinson Crusoé ao saber que os chefões do crime têm regalias e que as mesmas, quando ameaçadas, param e matam a cidade. Ou quando o jornal local ofende os moradores ao entrevistar ao vivo o presidente da Riotur, para que o mesmo discorra sobre os prejuízos do episódio para o reveillon e para a chegada de turistas na cidade.

Hoje discordei de uma amiga quando ela disse que o mundo era um lixo, que os seres humanos eram um lixo, e que por isso ela não queria gerar descendência.

Eu, Robinson Crusoé que estou, só queria continuar a discordar.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

A culpa é de JK

Quebremos o mito. Somente os arquitetos devem dar graças pelo governo de Juscelino Kubitschek. Afinal, Brasília é um marco mundial da qualidade dos brasileiros Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Fora isso, a cidade é uma fortaleza que cristalizou no espaço público e geográfico brasileiro a impunidade inconseqüente. É uma ilha em terra firme, cercada de distância do povo, fisicamente mesmo. E isso foi uma tragédia para a democracia.

O aumento de 91% dos salários dos parlamentares do Congresso, dado pelos próprios, é uma prova disso. Renan Calheiros e Aldo Rebelo, respectivamente presidentes do Senado e da Câmara, transparecem na foto acima a cara de quem está fazendo muita caquinha. Mas sabem que o único ônus que vão enfrentar é o mau humor da opinião pública. Nada mais. Nunca a opinião pública foi tão fraca, e Brasília ajuda nesse processo.

"Se essa palhaçada fosse na Cinelândia/Ia ter muita gente pra juntar na saída/Pra fazer justiça, uma vez na vida". Os versos de Herbert Vianna nunca foram tão atuais. Se o Senado e a Câmara continuassem no centro da cidade do Rio de Janeiro, ao lado do povo, cuja maioria circula por ali na busca diária de salários nada astronômicos, duvido que estariam tão tranqüilos em aprovar um aumento desses. Por mais que um exaltado quisesse chegar às mortais vias de fato - que nossa racionalidade condena mas, confessemos, dá vontade - no mínimo teriam que agüentar protestos bem próximos.

Mas eles estão em Brasília. No meio do deserto Planalto Central, numa cidade inventada sem vizinhança. E, na Praça dos Três Poderes, antes de se chegar aos Palácios e Casas Parlamentares, há um lago que anula qualquer tentativa de aproximação não autorizada. JK, com sua idéia incensada até hoje, deixou o povo longe dos políticos, e realizou o sonho obscuro de todo político mal-intencionado: ficar distante do povo enquanto não há novas eleições. Só por essa loucura, JK já pode ser considerado um desastre para o país. Sua cidade inviabilizou ainda mais a democracia.

Quando vier a próxima proposta de Reforma da Previdência (que não duvido que possa ser necessária, haja vista o envelhecimento da população), cobremos dos nossos representantes o exemplo vindo de cima. O corte ou congelamento dos salários deles; o corte nos jetons e auxílios paletó, gasolina, cafézinho; a demissão de metade dos assessores de gabinete; a extinção da indecente aposentadoria vitalícia para ex-presidentes, ex-governadores, ex-senadores e ex-deputados, que conseguem conquistá-la com dois mandatos apenas (no caso do presidente, um mandato). Não se engane com a desculpa de que o Congresso cortou despesas que possibilitaram o aumento. A questão é mais moral do que econômica. Não é justo, uma vez que não pode ser aplicado aos demais cidadãos.

Após a catarse, vamos ao espelho: você, que deve se lembrar em quem votou, pesquise se ele votou a favor desse indecente aumento (a votação foi dos líderes dos partidos, mas ainda assim o candidato, que pertence a um partido, deve uma explicação). Se tiver contato pessoal com ele, pergunte por que votou a favor (ou foi conivente) diante da gritante desigualdade social brasileira, diante da carga tributária avassaladora e do leão morto a cada dia pela maioria dos brasileiros, tão somente para sobreviver com dignidade. Incomode-o, apesar de Brasília. E não vote nele outra vez, pra que todos aprendam. Faça a sua parte. Ou seja omisso e engula caladinho essa nova falta de vergonha. E não venha murmurar perto de mim depois...

segunda-feira, 11 de dezembro de 2006


Mrs. Northfleet


Ellen Gracie Northfleet, brasileira. Primeira mulher a presidir o Supremo Tribunal Federal (STF), instância máxima do Poder Judiciário. Devido ao cargo, na ausência do Presidente da República, do Vice, e dos presidentes da Câmara e do Senado, ela pode ser também a primeira mulher a exercer o cargo de mandatária-chefe da nação. Deve ter enfrentado preconceitos e machismos da sociedade para exercer sua vocação. Para chegar ao posto em que está, também deve ter estudado muito as leis do país, principalmente a Constituição Nacional.

Ellen, semanas atrás, propôs que o teto dos salários dos juízes dos Ministérios Públicos Estaduais deveria ser equiparado ao teto dos ministros do STF. Nos valores atuais, o salário passaria de R$ 22.111,00 para R$ 24.500,00. Como se já não bastasse a Câmara e o Senado defenderem o aumento de 91% dos seus vencimentos, recentemente. Se o Executivo passou por escândalos e o Legislativo prosseguiu legislando em causa própria, só faltava o Judiciário se pronunciar. Poderia condenar publicamente a falta de bom senso dos congressistas, mas não. Com a proposta de Ellen, legitimou o descalabro flagrante com o dinheiro público. Também em causa própria.

Gracie não esperava a grita da opinião pública, que rechaçou tal atitude de quem já recebe seus proventos muito acima da média dos brasileiros, sem contar os auxílios congênitos. Averiguou e disse que cerca de 300 juízes já recebiam acima do teto, ilegalmente. Não disse quem ou onde, deixando no ar a imprecisão da informação e a desconfiança de que soltou um oportuno sofisma pra acalmar os ânimos que ela mesma exaltou.

Northfleet, com toda a capacidade intelectual que deve ter para ser ministra do STF, parece não perceber que a desigualdade social agrava a violência. Que poucos com tanto e tantos com tão pouco são um vácuo perfeito para o sentimento de injustiça geral e para alguns que preferem fazer a justiça com as próprias mãos. Inspirados em Robin Hood na prática (mas não no caráter), existem para tomar dos outros o que lhes falta, ou o que cobiçam.

Que os astutos leitores deste blog não percebam nestes parágrafos a complacência com bandidos. Roubou, que seja preso. No entanto, a sensação de "enxugar gelo" é constante, e não seria melhor se, de uma vez por todas, os líderes de nosso país resolvessem caminhar na direção de reduzir a desigualdade? Será que a violência não seria menor um dia? Mas quando menos esperamos, o Executivo desvia fundos, o Legislativo mira o umbigo, e o Judiciário consente e pede o seu "naco".

Ellen Gracie Northfleet veio ao Rio de Janeiro e uma quadrilha a assaltou na Linha Vermelha. Num lugar em que muitos trabalhadores que ganham bem menos que a ministra já foram assaltados. Veria ela alguma relação de sua indecente proposta com o acontecido? "Como você consegue viver nessa cidade?", desabafou Ellen com um amigo carioca, após o assalto. Da mesma maneira que tentamos viver nesse país, Gracie. Da mesma maneira heróica que, dia após dia, teimamos em acreditar que nosso Brasil diminuirá seus atrasos de mentalidade e visão de governo, apesar de seus líderes (em quem votamos, não esqueçamos disso também). Conseguimos viver, Northflleet, com salários básicos, sobreviver com salários mínimos, conviver de perto com a violência e suspirar tristes diante de exemplos como o do Judiciário. Não podemos votar para o STF, infelizmente.

Ellen Gracie Northfleet, brasileira. Exímia conhecedora da Constituição Nacional, que busca promover a igualdade de direitos. Parece desinformada sobre o país que habita e onde rege as leis, e insensível para com os cidadãos que precisam suportá-las na frieza da falta de bom senso. Ellen Gracie Northflleet, brasileira? Nem no nome. Se pensa que vive em outro país - como demonstram suas ações e pronunciamentos - que se desaloje bem rápido do nosso. Com todos os seus pares compadres.