domingo, 24 de outubro de 2004

Exílio

Minha casa está em obras, e dela não posso sair. Desejava morar num "abrigo temporário" até que a poeira baixasse de maneira literal, mas não dá. Preciso habitar no canteiro enquanto as metamorfoses do concreto avassalam. Enquanto isso, me teletransporto para depois do AI-5 e sinto todos os paladares do exílio. Em meu próprio quarto.

O quarto foi o primeiro na ordem artificial das coisas. Quebra-quebra, pintura, crescimento demográfico e reorganização social (volto a dividi-lo com minha irmã), novos componentes móveis, novo quarto. Meses se foram e agora me deleito no melhor momento de qualquer obra: quando ela já acabou.

Acontece que obra é coelho insaciável, já procria naturalmente e ainda recebe "Viagra" dos patrocinadores. Findos a sala, o outro quarto e a cozinha, é hora de brotar uma suíte e um escritório, lápides do quarto de empregada (que Deus o tenha, porque empregada mesmo nunca tivemos). Evoque-se Tim Maia, o que eu quero é sossego. Vá embora, não me amola, boa obra. Mas ela não vai. A furadeira na trincheira, o seguidor martelo e barulho, muito barulho. Poeira, muita poeira. Amargor, muito amargor.

Meu quarto é meu refúgio. Quase tudo o que preciso para minha sobrevivência cultural está lá. Tento interagir com a sala e a TV, com sofrer chego ao banheiro e à cozinha. É difícil. Por toda a casa, apenas o idioma da desordem (que precede o tal deleite que já falei, me chantageando sem piedade) e da poeira. Muita poeira.

É demais pra minha alergia. As portas do meu quarto são fechadas com força. À força. Lacro-me de todo o resto da casa e ao trazer o prato do almoço para a escrivaninha dos meus papéis, percebo o óbvio terrível: estou exilado. Em meu próprio quarto, em minha própria casa, em meio a minha família. Exílio irônico, que só podia acontecer comigo, refém predileto da mordaz ironia.

Quase choro de saudades da minha terra, que vai se transformando - e ainda que me permita testemunhar sua mutação, isso não me satisfaz. Estou preso a ela, paradoxalmente quero ir embora e não posso. Meu exílio é tão imóvel quanto minha casa. E tão destruidor quanto os de 40 anos atrás. Quero voltar, mas nem fui! Nesse momento estou numa biblioteca a quilômetros do meu bairro, e me sinto mais à vontade do que em meu quarto.

Quero minha casa - meu campo. Onde eu possa rever a mim mesmo, meus livros, meus discos e tudo o mais. Anistia, ainda que tardia!

domingo, 17 de outubro de 2004

Fernando Sabino, tudo a declarar

"Não se escreve impunemente, seja qual for o assunto, pelo menos quando se trata de escrever sobre o que não sabemos, justamente para ficar sabendo e nos conhecermos melhor, como acontece comigo. (Fernando Sabino, "Com a graça de Deus")

Como acontece comigo.

Recebi a notícia mais triste de 2004 sem saber como recebê-la, o que me causou uma anestesia inicial involuntária. Escrevia uma bem-humorada esquete teatral e me preparava para o feriado de 12 de outubro. Não sabia que seria aniversário de Fernando Sabino. Seria.

Não me choquei, não me entristeci demais, não chorei, não fiquei indiferente. Apenas não sabia como ficar. Não sabia o que sentir. Não estava pronto para não estar pronto. O dia seguinte foi escolhido para devorar os obituários, relembrar tudo o que eu já sabia sobre meu "pai nas letras" e lamentar uma perda irreparável não só para a literatura brasileira como para mim. E vida que segue. Faz parte.

Dia 13 de outubro, caça em sebos. Seis livros clássicos de Sabino numa média de cinco reais cada, ótimo negócio. Não me senti mal por essa gana de completar minha coleção após sua morte. Só não queria correr o risco de perder a oportunidade para demais órfãos em busca do espólio intencionalmente deixado por Sabino. "Se não foi publicado então não presta", dizia ele, ao explicar porque desengavetava tudo quanto é manuscrito até os últimos momentos em vida.

Pensava eu que estava tudo nos conformes. Agora era só gravar a entrevista que ele deu a Roberto d'Ávila há sete anos (e que seria repetida oportunamente nessa semana) e pronto: meu trabalho como fã de carteirinha estava completo. Mas eu era muito mais que isso, e ele era muito mais que um ídolo ou um escritor a se admirar. Só que eu não sabia da profundidade de todas essas coisas até ler o trecho em epígrafe neste artigo.

Em meio à adolescência, ler Fernando Sabino mexia comigo em dois aspectos. O primeiro: com que simplicidade ele escreve sobre coisas simples, sem ser simplista! O segundo, e derradeiro encurralamento vocacional pro resto da vida: será que eu também consigo...? Não foi nenhum espírito pretensioso que se apossou de mim para fazer tal raciocínio. Nunca desejei suplantar Sabino em sua genialidade de cronista. Era apenas uma janela da alma, escancarada, que me permitia avistar a expressão que já vinha. Posso eu, como Sabino, narrar as curiosidades simples de meu cotidiano por meio da crônica, correndo até o risco de ficar bom? Era como se ele respondesse com outra pergunta: "por que você não tenta?".

E assim começava o meu diálogo filial com Sabino, sem nunca termos nos conhecido pessoalmente. Seus porta-vozes eram diretos (as crônicas que tiravam as palavras de minha boca, deixando-me estupefato) e indiretos, principalmente nas aulas de redação. A ponto de, após conseguir o grau máximo numa prova de até 30 linhas, receber ao lado da nota o lembrete: "Não precisa escrever igual a Fernando Sabino!". Era ele me lapidando, dizendo que até então eu não tinha criado nada: o cotidiano simplesmente acontecia e minha narrativa copiava a dele. "Seja escritor, garoto! Ao menos, tente com mais coragem!".

Então surge o luto. Enquanto escrevia sobre Fernando Sabino compreendi melhor o que aconteceu. Aconteceu que ele não está mais vivo, aconteceu que estou órfão, aconteceu que doeu. Como na epígrafe, agora me conheço melhor.

A identificação que havia entre eu e Fernando permite agora que eu o chame pelo primeiro nome. Como eu, parecia não censurar a si mesmo nas crônicas. Ele estava nelas, seja em primeira pessoa ou pessoa escondida, mas era ele. Era tudo dele, tudo ele. Eu também, Fernando. Que negócio é esse que se apodera da gente e não sossega enquanto não transformamos em escrita? Que nos convoca à personificação temperando com emoção vivida as letras frias no papel? Que espírito, que chamado, que coisa!

Mas Fernando, te ler agora é como receber seu seguro de vida. Uma grana que veio em boa hora, mas a que custo? A custo de seu desaparecimento? De seus livros terem agora somente reedições? De não poder mais conversar contigo por meio das suas crônicas e de meus artigos? Seguem em mim, Fernando Sabino, as marcas de seu exemplo, talento, capacidade de se desnudar literariamente a desconhecidos de todo o país, de seu recolhimento para que a obra fale mais alto, e pela gente. Não queremos ter cara, apenas veia aberta no papel.

Fernando, sem você e Drummond, não tenho mais isso. Mas o outro mineiro faleceu quando eu tinha apenas sete anos, bem antes de começar a escrever. E nunca fui muito de poesia, só me arrisquei nas crônicas. Como você. E você, Fernando, me acompanhou desde o início, sem saber. Agora me sinto sozinho, meio desamparado, tendo que seguir sem meu tutor no inescapável caminho das letras. Agora a ficha caiu, cinco dias após sua morte.

Você não está mais aqui, Fernando, então por que me dirijo a você? Talvez porque eu não conheça outra maneira de tornar pública a nossa cumplicidade privada, a não ser por essas palavras dolorosas, francas e desabafantes. Talvez por não ter buscado te dizer isso em vida - meu Deus, que dor.

Nunca houve (nem há) em mim a intenção de ser escritor ou de galgar condecorações humanas. Apenas o transitar da mente para o papel, via coração, vida elaborada, encontrando assim um dos significados de minha existência terrena. E foi Fernando Sabino quem me ensinou. A gratidão é eterna. O luto é denso. A saudade, permanente como uma estátua a homenageá-lo. A motivação para prosseguir escrevendo, tão vigorosa e sincera como minhas lágrimas de agora. A alegria de ser seu filho, renovadora como encontro marcado.

Fernando Sabino, predestinado a me predestinar para a escrita.



quinta-feira, 7 de outubro de 2004

Impopularidade autêntica e assumida

Meu mau humor me encoraja. É ele quem (com o perdão da expressão chula) me dá os "colhões" a mais que me permitem enfrentar com veemência e sem tanta reserva o que me incomoda. Só de ter escrito uma expressão dessas logo na segunda linha demonstra o que quero dizer.

Minha alergia me guia ao mau humor. A paciência se esgota na proporção do nível de poeira, da multiplicidade de espirros (que sugam minha energia) e nas inconvenientes e reincidentes corizas. Nenhum remédio parece fazer efeito, os lenços acabam antes do necessário. Sou tolhido de minhas necessidades básicas e importunado em relação a outras - concentração para ler, disposição para escrever - me levando de maneira inevitável ao mau humor.

De mau humor não admito que me atendam mal na lanchonete, e dou as costas para não pagar por um mau serviço. De mau humor não aceito o santinho de um político crápula, e se ele ali estivesse, diria na sua cara: "clientelista!". De mau humor, estar sozinho é estar mal acompanhado; acompanhado, é pessimamente acompanhado. De mau humor, o murmúrio é o idioma oficial, e reivindico involuntariamente um exílio justificável.

De mau humor não há mascaras, sejam as hipócritas ou as necessárias para um cotidiano bem educado. De mau humor minha cara se auto-define, e passem ao largo os discordantes. Assumir sem rodeios o que está sentindo no momento, numa "autenticidade em neón" com o risco de machucar. Essa é a encarnação da coragem que o mau humor me proporciona. Colhões.

De mau humor enumero meus inimigos mentalmente e da mesma forma realizo crueldades com eles. Normalmente eles merecem, mas meu senso piedoso sempre dá um jeito. A menos que eu esteja de mau humor. Imagino-me humilhando cada um deles com irrefutáveis argumentos, desconstruindo seus defeitos em público, e nem me passa pela cabeça que façam o mesmo comigo. O mau humor é insuportável para seu portador, por isso ele não vê outra escolha senão pseudo-atravancar os que pseudo-atravancam seu caminho. É democraticamente insensato, suicida e psicologicamente demolidor.

De mau humor eu não me agüento, e me agüentaria menos se não escrevesse sobre isso. De mau humor faço um texto mau-humorado como esse, sem me preocupar tanto com possíveis leitores. É preciso dormir e deixar o estopim alérgico arrefecer, para retornar de cara lisa com o diplomático teatro nosso de cada dia.