terça-feira, 16 de março de 2004

Espanha, nossa aspiração!

Foi incrível o que aconteceu na Espanha semana passada. Um fato que envolveu a população do país e chamou a atenção do mundo para o que estava acontecendo naquela nação, que não é muito protagonista no cenário mundial.

E olha que não estou falando do atentado!

Fantástico foi ver a maturidade democrática dos espanhóis. Breve resumo: o partido do governo, favorito à reeleição de sua maioria parlamentar, atribuiu ao grupo separatista ETA a autoria do atentado no trem de Madri. Hipótese que prosseguiu sendo defendida mesmo depois do próprio ETA negar (coisa que nunca faz, pois orgulha-se de suas manifestações de terror) e da polícia averiguar que as características desse atentado não eram as típicas do ETA. Por exemplo, a alta travessia de civis no local.

Pois bem, a pergunta que ficou no ar após as bombas foi: qual a razão para um país "bonzinho" como a Espanha ser alvo de algo tão cruel? Quando começaram a surgir os indícios da Al-Quaeda (foi dia 11, dentre outros), outra pergunta surgiu, dessa vez com a resposta embutida: quem apoiou EUA e Inglaterra na invasão do Iraque??? Diante de tudo isso, o partido do governo ignorou tais informações - então de domínio público - teimou que era o ETA e assim fez até o dia da eleição. Analistas políticos afirmaram que, após a vitória assegurada, admitiriam a autoria real dos atentados. Assim, quando a revolta popular responsabilizasse o governo que levou o país à guerra (que, por retaliação árabe, transformou a Espanha em alvo), já era tarde, e a reeleição estaria consumada.

Acontece que o povo espanhol é "escolado". Um cartaz com os dizeres "ANTES DE VOTAR, A VERDADE" destacava-se, revelando o espírito crítico dos abalados cidadãos. Resultado: o partido do governo perdeu. Os socialistas que em 1996 foram tirados do poder após acusações de corrupção, venciam os que tentavam corromper informações e enganar milhões.

Portanto, brasileiras e brasileiros, aspiremos à Espanha. Seja esse o destino final e permanente de nossa democracia. Eles não complicaram: enganou e roubou, a gente derruba no voto. Não cederam à emoção, embora esta revelou-se de vital importância para dizerem que não se usa os sentimentos de um povo para interesses particulares. Quem sonega informações tentando manipular as massas merece o esquecimento, ensinam os espanhóis. Algum político brasileiro está sendo lembrado nesse momento?

A maturidade espanhola na hora de dizer NÃO aos cínicos do poder valoriza ainda mais a democracia. Pois, como devia ser sempre, o personagem principal dos fatos que pararam o mundo foi ele, o povo. Nada é mais notícia do que isso. Quem tem ouvidos para ouvir, perceba logo. Ou mude-se para a terra de Dom Quixote e lá serás como ele: isolado sonhador, pensando que votar é obrigação chata ou brincadeira fora de hora.

quarta-feira, 10 de março de 2004

O avião, a feira, a viagem

Quando foi a primeira vez que viajei de avião?

1999.

Tinha meus 18 anos e ganharia as alturas como nunca antes, sozinho. No aeroporto, minha família se despedia de mim aos prantos, como se estivesse indo à guerra. Só 4 dias, pôxa! Destino: nordeste brasileiro. Visitei Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba.

1989.

Dez anos antes de minha primeira jornada proporcionada por Santos-Dumont, mudei-me para São Cristóvão. Mais precisamente, no Campo de São Cristóvão. Mais precisamente ainda, pertinho da famosa feira dos nordestinos, feira dos paraíbas, feira de São Cristóvão. Dormia com aquelas musiquinhas de forró ao fundo, o triângulo batendo solto, a sanfona insone. E escola no dia seguinte!

Odeio as comidas nordestinas, odiava a música nordestina. Se duvidar, tinha péssimos olhos para aquela gente de cabeça chata, sotaque quase caricato, dança cafona. Povinho ignorante, pensava eu. E eliminava do meu Brasil aqueles brasileiros, honrando o preconceito em nome de minhas preferências pessoais.

2004.

Embarco em outra viagem, promovida por outro Dumont. José Dumont, ator que já havia encarnado a "Morte e vida severina" na TV e que voltava no tempo para me apresentar "O homem que virou suco", filme da época da ditadura. Filme que descreve a realidade do povo nordestino em êxodo rural e seu sofrer em São Paulo. Gente que sai de suas raízes para ser "espremido" pela miséria, subemprego/desemprego, preconceito, injustiça, desilusão até virar suco de laranja, como diz o próprio Dumont numa das cenas do filme.

E os que conseguiram vencer de alguma maneira, ou ao menos sobreviver com um mínimo de dignidade, ainda tinham que se superar, superar a saudade da terra tão querida, das origens incomparáveis, insubstituíveis. O carioca aqui, que só foi viajar quilômetros porque quis, com tudo pago e de avião bem confortável - para o Nordeste, vejam só - sentia-se invadido em suas terras por aquela gente esquisita.

Todos são esquisitos até que conheçamos sua história.

E conhecer a história desse povo é perceber que a feira que atrapalhava meu sono classe média era o lugar da lembrança da terra natal. O reencontro com sua cultura, em todas as suas manifestações, ainda que por apenas um fim de semana. Um fim de semana que valia o esforço da vida até então. Valia o preconceito sofrido desde o momento em que era forçado a render-se à urbanização e seus falsos progressos.

(Progresso em concreto é sepulcro caiado. Está lá o nosso interior assassinando quem não se enquadra em nosso contexto social. Cidade partida, país partido, coração idem.)

Estão aí os porteiros, pedreiros, mão-de-obra desqualificada de toda sorte, repentistas, balconistas e outras mais, clamando com sotaque arretado por reconhecimento. Reconhecimento digno, pois dignos são seus empregos, por mais que os MBAs nos façam pensar o contrário. Dignidade não se compra.

O sertanejo é, antes de tudo um forte, dizia Euclides da Cunha. Referia-se à histórica resistência de Canudos. Parece genético. Hoje, eles matam um exército republicano por dia. E ainda "batem coxa" no fim de semana, valorizando a cultura brasileira, a sua cultura, valorizando-se. Coisa que nosso orgulho metropolitano progressista nunca nos proporcionou.

Suco ácido. Revigorante. O povo nordestino parece mais brasileiro que o Brasil.