sábado, 23 de outubro de 2010

Apontamentos num caderno, redescobertos hoje

Eu o encontrei por acaso. Passava pela calçada e o vi num restaurante do centro da cidade. Parecia ter acabado de comer e estava com aquela preguiça de levantar da mesa logo após. Tinha um pouco de olheiras, estava meio trsite, meio perplexo. As mãos estavam juntas abaixo do queixo, cotovelos na mesa. Refletia sobre algo, pensava longe, olhava idem. Pelo o que conhecia dele, não estava bem.

Entrei no restaurante e sentei numa mesa perto de onde ele estava. Eu prestava bastante atenção nele, que sequer me notava - mesmo eu estando perfeitamente em seu campo de visão. Mais tarde vim saber que estava imerso em seus problemas, distraído pela incredulidade.

Resolvi falar-lhe.

- Você está irreconhecível!

Ao se espantar um pouco com a abordagem inesperada, devolveu:

- Eu poderia dizer o mesmo.

Não entendi. Mas não quis inquiri-lo, seu semblante transbordava indagações insolúveis. Procurei ser uma alma amiga, fazendo uma pergunta que poucos têm coragem de fazer querendo dizer exatamente o que ela diz:

- Como você está?

- Indo.

- Pra onde?

Ele riu rápido, mais por consideração do que por ter sido afetado por alguma graça. Na verdade, parecia imune a ela.

- Estou mal.

- Por quê?

Ele suspirou, como se tivesse que responder aquilo pela milésima vez. Ou como se estivesse cansado demais para responder.

- Refém.

- Do quê?

- Do que ou de quem?

- Me diga você.

Então ele riu de uma maneira bem diferente. Com um ar de sarcasmo, como se eu soubesse a resposta e estivesse perguntando de sacanagem.

- É muita ironia...

- Eu perguntar isso?

- É.

Ficamos em silêncio, um fitando o outro. Ele desviava o olhar, sempre cansado. Eu hipnotizado pela curiosidade.

- Fala, cara!, disse eu, caminhando para a impaciência.

- Não há muito o que falar. São meses e meses de angústia em busca de algo que vai ser muito bom quando eu conseguir.

O clima de mistério me emudecia.

- Enquanto eu não consigo, há terroristas em toda parte, com os interesses mais diversos, querendo me pressionar, me botar...

- ...de refém.

- Viu como você sabe?

- Bom, você já tinha dito antes.

- Enfim. Sabotando minha felicidade, o tempo todo.

- Se isso te serve de consolo, você não é o único a passar por isso...

- Isso não me serve de consolo, porra!!

A raiva foi inesperada, tanto quanto o palavrão. Estava mal mesmo.

- Foi mal, desculpa - disse ele.

- Tudo bem. Fala.

- Fazer tudo certo não garante que tudo vai correr bem.

- E a consciência?

- Ah, ok. Mas eu não estou fazendo um julgamento moral, não. Não me arrependo de ter feito o certo, o que me cabia. Mas isso não parece suficiente para me deixar bem.

- Quando depende só de você, é suficiente.

Isso o desarmou.

- É, não depende só de mim...

- E quando você depende de outros, quem garante que eles vão fazer o que cabe a eles?

Ele assentiu, voltando à reflexividade desapontada de quando o encontrei. Pelo visto, sentiu-se impotente.

- Você está dependendo de quem?, perguntei.

- Dos terroristas. E dos incompetentes.

- Tá maus.

Assim que terminei a frase, me arrependi. Fiquei preparado para mais um acesso de raiva, que não veio.

- É...

Suas últimas forças, sua última disposição para ter alguma iniciativa pareciam ter sido usadas na frase do palavrão. Estava inerte. Retomei:

- O que você está sentindo?

- Medo.

- Do quê?

- De acontecer alguma coisa e eu não conseguir o que estou buscando faz tempo, e  que vai ser muito bom pra mim.

- "Alguma coisa" pode acontecer a qualquer momento. Qualquer coisa.

- É verdade - concluía ele com uma nesga de esperança.

- Então...

- Na verdade, ando refém do medo.

- Eu sei.

- Eu sabia que você sabia...

- É que só agora, ouvindo você, percebo com mais clareza.

- Imagino. Queria sentir o mesmo.

- Na verdade, eles dependem muito mais de você do que você, deles.

- Hã?

- Pensa só. Se eles te aterrorizam usando o medo, é porque não têm nada concreto para usar. Precisam do abstrato, da especulação para fazer o jogo psicológico, o abalo emocional. Você está do jeito que eles adoram.

- É verdade - ele sempre falava isso ao fim de cada aprendizado.

- E os incompetentes não vão durar muito tempo, se esmeram em tropeçar nas próprias pernas. Sem exagero: você é competente. Está querendo fazer o que te cabe, e está conseguindo.

- Estou fazendo tudo o que posso.

- Então pare de se condenar por isso.

- Pelo quê?

- Por estar fazendo tudo o que pode, ora!

O rosto dele se iluminou. Ele riu, dessa vez com um alívio que me causou alegria.

- Que bom que nos encontramos, disse ele.

- Estava demorando.

De novo nos fitamos, em silêncio. Ele se levantou para ir embora e me deu um abraço.

Fiquei sozinho na mesa presente, enquanto ele sumia no futuro.

Me despedi de mim, e sorri.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O aborto de cérebros

"Mas será que nem no Dia das Crianças vão parar de falar em aborto?", perguntava Tutty Vasques antes do dia 12 de outubro. O tema, que surge nos jornais somente como pretexto para sangrar este ou aquele candidato, mais uma vez tornou-se onipresente. O debate sobre o aborto inexiste, mas será que alguém está de fato preocupado com isso?

Como é de praxe neste blog, jogo limpo com os leitores. Sou contra a prática do aborto e contra qualquer legalização pura e simples que favoreça a banalização do tema. Mas o que tem me tirado do sério é a postura de boa parte dos evangélicos na hora de construir o país que queremos.

Não bastasse a cultura, o entretenimento e o modo de vida norte-americanos, agora também importamos o fundamentalismo religioso. O sincretismo que sempre foi (e ainda é) traço marcante da nossa nação permitia que as religiões convivessem no mesmo território. Não vou exagerar dizendo que o convívio demonstrava amabilidade ou admiração mútuas. Mas não havia uma animosidade à flor da pele, muitas vezes criando preconceitos onde não existia.

O problema é que, na mesma proporção em que a parcela evangélica crescia na população brasileira, surgiam seus desvios de conduta. Nada diferente do que já tinha ocorrido com os católicos e, se fizerem um levantamento nas religiões de políticos e líderes controversos ou questionáveis, veremos novamente o sincretismo brasileiro ali representado.

Mas o grande problema mesmo é que os evangélicos conseguiram acesso à concessões públicas de rádio e TV, possibilitando que o eco de suas palavras alcançasse mais e mais pessoas, direta e indiretamente. E uma das principais consequências disso é a ascensão de líderes e políticos com mentalidade de gueto, que têm como objetivo a supremacia evangélica sobre a sociedade. Se isso penalizar a construção de uma cidadania plena e igualitária, não estão nem aí.

A retórica desse pessoal é conhecida. Um de seus principais representantes é o pastor Silas Malafaia, que se transformou numa espécie de oráculo para evangélicos de todas as denominações, opinando sobre projetos de lei e opções políticas. A conciliação possível não lhe agrada. Efetuar palavras de ordem com supostos fundamentos bíblicos, com verve polemista, sim. O que ainda arrebanha mais gente para suas causas.

Isso não me pertence!

Anteontem, Dilma se reuniu com 50 representantes evangélicos para assumir o compromisso de vetar qualquer tentativa de legalização do aborto. É possível que ganhe os votos conservadores que perdeu em meio aos terrorismos virais da internet. Dá pra se ter uma ideia de como é a influência dessas lideranças no eleitorado evangélico.

O incrível é que eles exigem da candidata (fizeram isso com Serra?) um compromisso público e por escrito que não aprovará leis contrárias ao que eles querem. É isso mesmo: admitiram que querem privilégios e supremacia sobre o resto da sociedade. O que esses mesmos líderes diriam se uma comitiva homossexual fizesse o mesmo? Ou de umbandistas?

É um absurdo do ponto de vista democrático e cidadão e muito ultrajante para mim, cristão evangélico desde a infância, ver que são esses os líderes do rebanho brasileiro atual. Quero afirmar categoricamente que eles não me representam, e que há muitos com uma mentalidade cristã antenada com os tempos atuais, sem deixar de seguir o Evangelho de Cristo, e que nada têm a ver com essa corja.

É o pessoal dos Novos Diálogos, gente que segue a Trilha, que se diverte com o Pavablog e anda pelo Caminho da Graça, só pra ficar em alguns exemplos. Gente que não só crê num Deus Todo-Poderoso, como procura viver sabendo que Ele é Todo-Poderoso e pronto.

Os líderes que foram pressionar Dilma acham que suas leis, seus poderes terrenos e seus fundamentalismos que coagem tantos vão mudar valores, corações e atitudes. Estão errados, só Deus é capaz disso, e Ele não depende de nenhum arcabouço legal ou político para fazê-lo. Aliás, os passos de Jesus quando entre nós demonstram o oposto, denunciando o farisaísmo hipócrita.

Então, quando você vir a palavra evangélico em qualquer meio de comunicação, saiba que ela carrega um asterisco discordante do qual este blog é testemunha.