sábado, 27 de novembro de 2004

Nossos rumos em nossas entrelinhas

Pra lá. Pra cá. Upa, quase que ela cai! Sai do balanço, corre pra jogar a bola, o pai sempre perto, pra brincar junto e dar segurança. Riso fácil e farto, naquela espontaneidade de quem acorda e é sempre feriado. Pés descalços, pois ali é lugar santo, fase santa da vida chamada infância. Recompensa da vida chamada paternidade.

Tirai da minha frente os estereótipos míticos desse tema. Quero ter a percepção pura e simples, pro resto da vida, do que é curtir o filho (ou a filha). Estou sentado lendo algo distante de tudo isso, rascunhava outras linhas igualmente remotas, quando fui capturado pela cena. Um balanço, uma bola atirada pra lá e pra cá, nenhuma fala. Apenas satisfação legendada subjetivamente.

Vez por outra eles me olham, e preciso disfarçar. Volto a escrever sobre o que os dois me proporcionam, mas a tinta do coração vai secando e preciso olhar de novo. Paro, olho em volta, ouço o forró da Feira de São Cristóvão, o pagode de turistas gaúchos do outro lado da rua, encaro o dominó de uns caras mal-encarados. E retorno à paternidade expressa em viva vida.

A mãe chega e vira figurante do espetáculo promovido por pai e filha. Quase espectadora, sorri, como eu faço por dentro. Resolve também participar das brincadeiras e aí está, idilicamente, o exemplo de família feliz. Óbvio que não os conheço nem sei seus problemas, particularidades, defeitos, frustrações e demais chamados realísticos. Mas sou grato por me permitirem esses caprichos da imaginação em perspectiva.

Eles vão embora, cansados de tanta plenitude. Aproveitaram o feriado, e eu também. Fui acolhido temporariamente por aquela família, principalmente pela filha e seu pai, que me encorajaram a um dia fazer o mesmo. Nesse 15 de novembro proclamei a República Hereditária em meus sonhos. Pegando em armas genéticas, quimicamente misturadas em amor, projetando meu futuro que já começou naqueles instantes.

quarta-feira, 10 de novembro de 2004

A cruz da questão

- Evangélica, eu? Deus me livre!

O que não faz muito tempo seria uma curiosa contradição, nas palavras da cobradora do ônibus parecia lógico. Ainda mais diante dos exemplos de "gente de Deus" conhecidos publicamente. O evangélico Bush, reeleito para seguir com seus genocídios a bel-prazer. A evangélica família Garotinho, cometendo todos os possíveis e prováveis crimes eleitorais. Os evangélicos bispos-parlamentares envolvidos em corrupções sacrílegas para a nação. A bancada evangélica no Congresso, insípido sal, verdadeira mesma farinha. Desse jeito...

Desse jeito sinto-me deslocado sabendo que estou onde devo estar. Que a despeito dos exemplos na mídia, carregados de má fama, faço parte desse grupo. O IBGE me classifica sem meio-termo: evangélico. Sou e me espanto com o quadro acima, incluindo a ofendida resposta da cobradora. Sinto-me estranho, por perceber que pertenço a um grupo que parece cada vez mais distante de sua origem, o Evangelho. E tremendamente constrangido quando figuras do tipo dizem que falam em meu nome.

Cientistas sociais, antropólogos, teólogos, pesquisadores de religião. Todos eles, vez por outra, surgem para explicar o "fenômeno evangélico brasileiro". Um crescimento populacional que já chega a 30% dos 180 milhões. Estou vendo de perto, estou lá dentro. O assunto não sai da moda, pois viramos nicho de mercado, peso político, massa de manobra.

Mas o incômodo surge porque, de fato, não tenho voz, vez, representação, nada. Nem eu nem boa parte de meus companheiros de jornada, pois fugimos do rótulo de "religiosos" como o diabo da cruz. Muitos de nós (que não aparecem na mídia) não se identificam nem um pouco com esses ditos representantes. Somos críticos, discordamos da práxis e percebemos, melhor do que quaisquer outros, o oportunismo flagrante a respeito de coisas tão sérias e profundas como a palavra de Deus.

Pior: flagra-se a distância de Cristo. Se tento, junto a meus irmãos de caminhada, buscar um compromisso fiel com Aquele que um dia nos alcançou nas entranhas, sem convencimento argumentativo ou propostas de prosperidade, não é nos públicos pseudo-expoentes da fé cristã que encontro exemplos a seguir. É preciso que isso seja dito. Eles estão sozinhos, ainda que com uma cega multidão os elegendo aqui e ali. Estão todos sozinhos, sem perceber. Sem perceber que, quando se fez homem, o próprio Jesus fez diferença (pra melhor), e que nunca coadunou com os poderosos de seu tempo em troca de benesses para sua causa, nunca se alienou de seu contexto social. Nunca.

É esse Jesus que eu e muitos amigos seguimos, e que fique bem claro, bem público, bem conhecido aos que me lêem. Que é o genuíno Jesus, que não negociava valores do reino de Deus por nada desse mundo, que é motivado por amor para transformar os corações, que deixou sua Palavra - a Bíblia - para ser instrumento de cura e não de lei implacável. Que seria crucificado novamente por Bush e cia.

Não serei conivente com esses auto-proclamantes evangélicos. Não dá pra ficar calado, consentindo. E não me orgulho de ser religioso, protestante, evangélico, crente ou qualquer outro carimbo socio-ideológico onde queiram me enquadrar. Sou cidadão do mundo, antenado na vida, pés no chão, olhando para o Alto, procurando compartilhar a todos, por todos os meios possíveis, o que preenche nossa existência com significado pessoal e ad eternum. Sabendo de minhas limitações, mas certo de quem é, de fato, o Todo-Poderoso de Todos os Tempos. E que Ele se achega de maneira mais simples do que podemos imaginar.