terça-feira, 24 de agosto de 2004

A contribuição do leitor

Transcrevo aqui, com a devida autorização, os comentários da Louise sobre o artigo "O melhor do Brasil é a propaganda" que você pode ler rolando a tela. Jornalista e leitora assídua desse blog, ela mantém lá em cima o nível da formação de opinião que acontece por aqui. Acompanhe só:

"Sei não... Acho a discussão muito importante sim, porque precisamos sempre levantar questões e debater a realidade. Mas acho que esse ponto que vc pegou não deixa de ser uma crítica fácil. "Fácil" porque é a primeira coisa que nos vem à cabeça, a questão de os dois serem exemplos extra-ordinários. Só que:

1- Existem, sim, outros filmetes com histórias mais próximas do cidadão comum. Vi dois outro dia, em algum programa da Band, e são lindos. Só não sei porque ainda não estão sendo veiculados (aqui no Rio pelo menos);

2- Não vou cair na esparrela de desestimular a luta. A impressão que tive, quando li seu anti-penúltimo parágrafo, é a de que a gente tem mais é que querer que tudo se exploda. Que, porque existe tanta coisa errada à nossa volta, devemos desistir, porque nada vai mudar. Eu te conheço o suficiente para acreditar que não foi isso o que você quis dizer, mas pelo menos foi a sensação que tive quando li as bem-traçadas linhas. Ao mesmo tempo, acredito, profundamente, que sem exemplos ninguém tem estímulo para lutar, para melhorar. Ou será que teríamos tantos jovens revolucionários sem o Che altivo que hoje estampa camisetas? E esse é só um caso entre tantos, para o bem e para o mal (Gandhi, Hitler, John Lennon, Vargas...).

'Ah, mas esses comerciais não dizem nada disso'. Reconheço que os heróis que citei transformaram profundamente a sociedade, e que levaram a uma movimentação popular intensa, cada um a sua maneira. Mas, honestamente, não acho que comerciais se prestem a esse tipo de coisa. Cada veículo, cada mídia, tem o seu apelo e o seu propósito - e o da propaganda, que eu me lembre, é justamente te vender um produto. No caso, a idéia de que vale a pena correr atrás, mesmo quando tudo parece perdido. Nesse aspecto, o anúncio é irretocável. No entanto, esperar que ele abra um espaço para discussão, que estimule as pessoas a fazerem passeatas e piquetes por um salário mais justo... infelizmente não é a função do marketing (tanto quanto não é a função das faculdades ou da TVE estimular a futilidade do Big Brother).

Por isso tudo, concordo que uma parte da batalha diária dos brasileiros foi ignorada em detrimento do drama dos famosos (e nem vou entrar no mérito da discussão de se um famoso tem mais apelo - e impacto - perante à massa do que um desconhecido), mas não dá pra ignorar todo esse contexto na hora de analisar o comercial... E, por favor, tudo o que eu escrevi aqui é na melhor das intenções. Não quero brigar com você não, moço! :)"


Sei que não, Louise. Mas é muito bom alguém discordar com civilidade e na intenção de esclarecer sem interesses espúrios ou ressentimentos. Coisa tão em falta no nosso jornalismo atual.

terça-feira, 17 de agosto de 2004

Do verbete "forçação"

Escrevo esse artigo ao terceiro dia de Olimpíadas, ainda sem saber quando irei publicá-lo. Portanto, até o presente o momento, o Brasil não ganhou nenhuma medalha. Mas o que dizer das manchetes abaixo, todas de primeira página?

"Brasil bate recorde em Atenas - basquete feminino e natação alcançam marcas históricas nos Jogos"

"Brasil é tri na ginástica"

Para três dias de disputa, são feitos e tanto! Ávido pela chamada em letras grandes logo de cara, corro pra ver quantas medalhas nossos atletas já abocanharam. Começo a estranhar. Cada o texto que fala disso? Será que estou no caderno certo? Estou. Zero medalha. Mas do que falavam as manchetes, então?

O recorde do basquete: o maior número de pontos marcado no torneio feminino olímpico (128) e igualando a maior diferença entre duas equipes (o Japão fez apenas 62 pontos). O recorde da natação: Joanna Maranhão conseguiu o quinto lugar nos 400m medley e tornou-se a primeira brasileira a estar entre as oito melhores do mundo desde 1936. O "tri da ginástica" é o mais curioso: na verdade, são três atletas classificadas para a final do solo.

Empolgante...

Que os referidos atletas não me leiam para que não pensem que desqualifico todo o seu esforço. Mas pra que tanto alarde se o mais importante a se conquistar numa olimpíada - as medalhas - não foi alcançado ainda? Por que tanta euforia com tão pouco?

Bom, é preciso que compremos a idéia das Olimpíadas, em todos os sentidos. E como bem apontou Mino Carta na edição nº 303 de Carta Capital, fica bem escondida a humilhante situação brasileira na política esportiva. Um país com riquezas como as nossas e talentos em tudo quanto é modalidade, com mais de 180 milhões de habitantes... conseguir só 12 medalhas nos Jogos de Sidney-2000, por exemplo? Onde está o erro?

Provavelmente nos investimentos aquém do esperado no esporte brasileiro, que além de nos elevar à potência mundial nesse aspecto, ainda ajudariam a reduzir a desigualdade social com a inclusão profissional de milhares de jovens. Nossos atletas são os melhores do mundo, pois mesmo com os obtusos dirigentes e os obstáculos amadores e sócio-econômicos, conseguem levar o combalido Brasil aos lugares mais altos da competição. Não é por sobra de incentivo que isso acontece.

E os leitores são desinformados ao tentarem acompanhar o desempenho de nossa delegação. Afinal, as manchetes de primeira página criam uma grande expectativa, que é frustrada nas primeiras linhas da matéria. As suadas vitórias de nossos atletas começam então a ser banalizadas por menores resultados, eficazes apenas para que a cobertura diária das Olimpíadas pareça mais interessante do que não é.

O pior acontece: a imprensa esportiva do "oba-oba" (como tão bem classificou Fernando Calazans) diz sempre que o Brasil é um grande favorito para os Jogos; e os parcos resultados ao fim dos quinze dias de competição faz com que tenhamos raiva ou, no mínimo, desprezo por nossos atletas.

Vale então a cruel lógica que vigora por aqui: se não é campeão, de nada valeu, não interessa. Ora, quem é uma das maiores responsáveis para que essa lógica se perpetue de quatro em quatro anos? Aquela que a divulga de maneira incorreta, a tal imprensa do "oba-oba". Que obtém maiores sucessos na editoria onde a paixão fala mais alto que a razão, encarnada na universal figura do torcedor.

Esse tipo de cobertura é o que eu chamo de "forçação de barra". Verbete inexistente, contudo mais preciso e fiel que grande parte da cobertura esportiva brasileira.

quinta-feira, 12 de agosto de 2004

O melhor do Brasil é a propaganda

Quando o presidente da república disse que o povo estava carente de heróis, surfando na onda da campanha "O melhor do Brasil é o brasileiro", da Associação Brasileira de Anunciantes, foi aquela grita. Críticas e apologias invadiram os jornais. Cada colunista sentiu-se instigado com vara curta a replicar. Eu idem, mas a enxurrada de opiniões foi tamanha que me deixou inibido. Contudo é indiscutível o talento dos anunciantes tupiniquins: conseguiram que o líder da nação fosse seu garoto-propaganda, e de graça!!

Os colunistas em geral refletiram sobre a necessidade de se ter heróis, até que ponto isso é benéfico para a conscientização do povo, para a cidadania. E que tipo de herói? O assunto rendeu por vários dias. Mas só agora pude assistir na TV os filmes publicitários que narram a vida de Ronaldinho e Herbert Vianna como exemplos de brasileiros que não desistem. Como espectador e já distante da polêmica à época do lançamento da campanha, uma pulga despertou e ainda está lá, no cantinho da minha orelha.

Nos anúncios a trilha "Tente outra vez", de Raul Seixas, encaixa-se perfeitamente com as histórias dos heróis brasileiros. Elas são contadas por meio de manchetes de jornal e pequenos filmes mostrando o calvário do cantor e do jogador, até o fim apoteótico de sua recuperação e conseguinte vitória. Fechando, o slogan: "Eu sou brasileiro e não desisto nunca".

Não quero cair na insensibilidade cretina de relativizar o drama de Ronaldo e Herbert. Eles e suas famílias (muito mais que os fãs, muito mais que a imprensa) é que sabem da dor sofrida. Mas o slogan acaba tornando-se quase ofensivo para a grande massa de brasileiros que pretende alcançar. A questão aqui é a diferença de realidades.

E se Herbert Vianna, após socorrido do acidente, fosse levado a um hospital público? Se pegasse aquela longa fila onde só os baleados pela violência (em geral das áreas mais pobres) têm prioridade? Durante o período de reabilitação, Herbert ficou sem gravar ou fazer shows. Ou seja, parou de trabalhar, ficou desempregado. Ainda bem que tinha família, dinheiro investido, direitos autorais rendendo etc. E, claro, ficou com hospital e fisioterapeuta particulares.

E se Ronaldinho não fosse "o" Ronaldinho? Se ainda estivesse iniciando sua promissora carreira no São Cristóvão ou no Cruzeiro (seus primeiros times) e sofresse a grave contusão no joelho que o deixou dois anos parado? Também temporariamente desempregado. O clube arcaria com tudo? E sua família, que dele também dependia, seria assistida pelos responsáveis cartolas de nosso futebol brasileiro? Será que, após marcar aquela consulta no SUS, daria tempo de Ronaldinho começar a fazer fisioterapia e se recuperar, pro bem da seleção?

Para Ronaldinho e Herbert, com os recursos materiais que possuíam à época de seus terríveis problemas, fica fácil abrir aspas e dizer que é brasileiro e não desiste nunca. Aí está a ofensa: se a grande massa da população não tem como obter os mínimos direitos humanos básicos como saúde, educação e renda digna, a opção mais fácil sempre é desistir. Mesmo assim, ele prossegue. E vem uma campanha dessa e larga a palavra de ordem, quase uma bronca: se você é brasileiro, não desista, nunca. Disso ele já sabe...

Nas entrelinhas: não desista, apesar de seus governantes. Não desista, apesar da corrupção que suga o dinheiro público. Não desista, apesar dos inúmeros recursos que a justiça permite aos "peixões", ao contrário do preto-pobre-miserável-ladrão-tem-mais-é-que-morrer. Não desista, apesar de viver em condições sub-humanas, apesar de seu trabalho escravo, de seu salário-mínimo, de sua absoluta falta de opções para sobreviver a não ser resignar-se em ser explorado.

Uma campanha para levantar a auto-estima do brasileiro? Não da maioria. Da minoria, talvez? Então é um mimo, no final das contas. Um mimo para quem já tem o que precisa, é isso. Que ainda consome bastante, e esse não pode pensar em desistir, em deixar de gastar seu dinheiro em muita coisa vã. Afinal, é uma campanha da Associação Brasileira de Anunciantes!

É uma pena (mais uma!!!) que o presidente que mais conhece a realidade popular tenha protagonizado essa ofensa em cadeia nacional.