Insensibilidade regular
Ultimamente tenho tentado não ser um cri-cri de plantão. Isto é, aqueles caras que fazem questão de ser críticos e retomam sempre os mesmos temas dos quais adoram falar, e de mau humor. Pessoas assim diminuem o valor da crítica em si, que é necessária para que os mais espertos não se aproveitem da indiferença dos demais.
Por outro lado, confesso que passo por momentos de grande ceticismo, principalmente em relação a nossos representantes políticos. Sinto-me sem opção para escolher alguém digno e que vá tentar dar um jeito no espírito colono que habita nossa gestão pública. Então, acabo por querer ficar quieto, pois qualquer crítica soaria como um cri-cri de plantão.
Mas as chuvas recentes do Rio de Janeiro foram o trampolim para que eu voltasse às figuras de Sergio Cabral e Eduardo Paes, governador e prefeito de onde moro. E é inevitável constatar que, em matéria de insensibilidade, os dois políticos bateram todos os recordes.
Diante do estado de sítio em que o Rio se tornou, o assunto que Cabral e Paes estão abordando a torto e a direito é a tal da ocupação irregular nos morros. Desses lugares estão surgindo a maioria dos mortos, devido a deslizamentos de terra.
Enquanto os cidadãos esperam, no mínimo, que os governantes mostrem o que tem sido feito na infraestrutura do Rio de Janeiro para que as chuvas não causem tantos estragos, os dois governantes condenam com veemência quem mora nos morros e quem ainda permanece neles após a tragédia. E aproveitam pra alfinetar os críticos de suas ideias de remoção/reassentamento de comunidades, acusando-os de demagogia.
Agora à noite uma amiga nos telefonou. Disse que viu um conhecido na TV e resolveu ligar pra ele. Descobriu que o tal conhecido perdeu seus dois filhos pequenos e a cunhada num deslizamento de terra. Ele mora num morro de Niterói.
Pois se já não bastasse a dor em dose tripla, esse cidadão ainda está sendo acusado, por seus próprios governantes, de ser o culpado pela morte dos filhos. Afinal, quem mandou morar numa área de risco? E por que ainda continua lá, por que não saiu de lá?
Eu fico pensando se alguém resolve morar no morro por escolha consciente. Pensa bem: você vai comprar apartamento, ou alugar mesmo, e checa as opções. O morro seria uma delas? Você escolheria morar num lugar onde o Estado não chegou, sabendo que terá que se virar sozinho pra tudo nessa vida? E se algo acontecer, você teria renda suficiente para, de repente, querer morar num lugar melhor e sem risco?
O medalhista olímpico Torben Grael, morador de um luxuoso condomínio em Niterói, também teve sua casa destruída pelo deslizamento. Assim como tantos outros, era morador de uma encosta, de um morro, de uma área de risco - mas devidamente legalizada pelos poderes constituintes. Cabral e Paes condenarão Torben Grael?
E Torben já decidiu que não volta mais pra lá, vai se mudar para outro lugar. Por que o pai que perdeu seus filhos não faz o mesmo?
O aspecto mais frio e cruel dessa história toda é que as palavras de Cabral e Paes parecem ser mais uma agulha no palheiro da insensibilidade que tomou conta de nosso tempo. Declarações como a deles deveriam causar um choque de ordem no status quo de seus mandatos, mas todos parecem estar anestesiados. A imprensa carioca, então, é um cordeirinho diante do governador e do prefeito.
No meio da chuva, me sinto um peixe fora d'água.