quarta-feira, 10 de março de 2004

O avião, a feira, a viagem

Quando foi a primeira vez que viajei de avião?

1999.

Tinha meus 18 anos e ganharia as alturas como nunca antes, sozinho. No aeroporto, minha família se despedia de mim aos prantos, como se estivesse indo à guerra. Só 4 dias, pôxa! Destino: nordeste brasileiro. Visitei Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba.

1989.

Dez anos antes de minha primeira jornada proporcionada por Santos-Dumont, mudei-me para São Cristóvão. Mais precisamente, no Campo de São Cristóvão. Mais precisamente ainda, pertinho da famosa feira dos nordestinos, feira dos paraíbas, feira de São Cristóvão. Dormia com aquelas musiquinhas de forró ao fundo, o triângulo batendo solto, a sanfona insone. E escola no dia seguinte!

Odeio as comidas nordestinas, odiava a música nordestina. Se duvidar, tinha péssimos olhos para aquela gente de cabeça chata, sotaque quase caricato, dança cafona. Povinho ignorante, pensava eu. E eliminava do meu Brasil aqueles brasileiros, honrando o preconceito em nome de minhas preferências pessoais.

2004.

Embarco em outra viagem, promovida por outro Dumont. José Dumont, ator que já havia encarnado a "Morte e vida severina" na TV e que voltava no tempo para me apresentar "O homem que virou suco", filme da época da ditadura. Filme que descreve a realidade do povo nordestino em êxodo rural e seu sofrer em São Paulo. Gente que sai de suas raízes para ser "espremido" pela miséria, subemprego/desemprego, preconceito, injustiça, desilusão até virar suco de laranja, como diz o próprio Dumont numa das cenas do filme.

E os que conseguiram vencer de alguma maneira, ou ao menos sobreviver com um mínimo de dignidade, ainda tinham que se superar, superar a saudade da terra tão querida, das origens incomparáveis, insubstituíveis. O carioca aqui, que só foi viajar quilômetros porque quis, com tudo pago e de avião bem confortável - para o Nordeste, vejam só - sentia-se invadido em suas terras por aquela gente esquisita.

Todos são esquisitos até que conheçamos sua história.

E conhecer a história desse povo é perceber que a feira que atrapalhava meu sono classe média era o lugar da lembrança da terra natal. O reencontro com sua cultura, em todas as suas manifestações, ainda que por apenas um fim de semana. Um fim de semana que valia o esforço da vida até então. Valia o preconceito sofrido desde o momento em que era forçado a render-se à urbanização e seus falsos progressos.

(Progresso em concreto é sepulcro caiado. Está lá o nosso interior assassinando quem não se enquadra em nosso contexto social. Cidade partida, país partido, coração idem.)

Estão aí os porteiros, pedreiros, mão-de-obra desqualificada de toda sorte, repentistas, balconistas e outras mais, clamando com sotaque arretado por reconhecimento. Reconhecimento digno, pois dignos são seus empregos, por mais que os MBAs nos façam pensar o contrário. Dignidade não se compra.

O sertanejo é, antes de tudo um forte, dizia Euclides da Cunha. Referia-se à histórica resistência de Canudos. Parece genético. Hoje, eles matam um exército republicano por dia. E ainda "batem coxa" no fim de semana, valorizando a cultura brasileira, a sua cultura, valorizando-se. Coisa que nosso orgulho metropolitano progressista nunca nos proporcionou.

Suco ácido. Revigorante. O povo nordestino parece mais brasileiro que o Brasil.

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