A cruz da questão
- Evangélica, eu? Deus me livre!
O que não faz muito tempo seria uma curiosa contradição, nas palavras da cobradora do ônibus parecia lógico. Ainda mais diante dos exemplos de "gente de Deus" conhecidos publicamente. O evangélico Bush, reeleito para seguir com seus genocídios a bel-prazer. A evangélica família Garotinho, cometendo todos os possíveis e prováveis crimes eleitorais. Os evangélicos bispos-parlamentares envolvidos em corrupções sacrílegas para a nação. A bancada evangélica no Congresso, insípido sal, verdadeira mesma farinha. Desse jeito...
Desse jeito sinto-me deslocado sabendo que estou onde devo estar. Que a despeito dos exemplos na mídia, carregados de má fama, faço parte desse grupo. O IBGE me classifica sem meio-termo: evangélico. Sou e me espanto com o quadro acima, incluindo a ofendida resposta da cobradora. Sinto-me estranho, por perceber que pertenço a um grupo que parece cada vez mais distante de sua origem, o Evangelho. E tremendamente constrangido quando figuras do tipo dizem que falam em meu nome.
Cientistas sociais, antropólogos, teólogos, pesquisadores de religião. Todos eles, vez por outra, surgem para explicar o "fenômeno evangélico brasileiro". Um crescimento populacional que já chega a 30% dos 180 milhões. Estou vendo de perto, estou lá dentro. O assunto não sai da moda, pois viramos nicho de mercado, peso político, massa de manobra.
Mas o incômodo surge porque, de fato, não tenho voz, vez, representação, nada. Nem eu nem boa parte de meus companheiros de jornada, pois fugimos do rótulo de "religiosos" como o diabo da cruz. Muitos de nós (que não aparecem na mídia) não se identificam nem um pouco com esses ditos representantes. Somos críticos, discordamos da práxis e percebemos, melhor do que quaisquer outros, o oportunismo flagrante a respeito de coisas tão sérias e profundas como a palavra de Deus.
Pior: flagra-se a distância de Cristo. Se tento, junto a meus irmãos de caminhada, buscar um compromisso fiel com Aquele que um dia nos alcançou nas entranhas, sem convencimento argumentativo ou propostas de prosperidade, não é nos públicos pseudo-expoentes da fé cristã que encontro exemplos a seguir. É preciso que isso seja dito. Eles estão sozinhos, ainda que com uma cega multidão os elegendo aqui e ali. Estão todos sozinhos, sem perceber. Sem perceber que, quando se fez homem, o próprio Jesus fez diferença (pra melhor), e que nunca coadunou com os poderosos de seu tempo em troca de benesses para sua causa, nunca se alienou de seu contexto social. Nunca.
É esse Jesus que eu e muitos amigos seguimos, e que fique bem claro, bem público, bem conhecido aos que me lêem. Que é o genuíno Jesus, que não negociava valores do reino de Deus por nada desse mundo, que é motivado por amor para transformar os corações, que deixou sua Palavra - a Bíblia - para ser instrumento de cura e não de lei implacável. Que seria crucificado novamente por Bush e cia.
Não serei conivente com esses auto-proclamantes evangélicos. Não dá pra ficar calado, consentindo. E não me orgulho de ser religioso, protestante, evangélico, crente ou qualquer outro carimbo socio-ideológico onde queiram me enquadrar. Sou cidadão do mundo, antenado na vida, pés no chão, olhando para o Alto, procurando compartilhar a todos, por todos os meios possíveis, o que preenche nossa existência com significado pessoal e ad eternum. Sabendo de minhas limitações, mas certo de quem é, de fato, o Todo-Poderoso de Todos os Tempos. E que Ele se achega de maneira mais simples do que podemos imaginar.
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