Acabo de ter uma experiência atrasada. Passa da meia-noite, é 2007 e eu ouvi Sgt. Pepper's, um dos mais marcantes discos dos Beatles, de ponta a ponta. Coloquei os fones de ouvido, aumentei o volume e percebi cada nuance, arranjo, ousadia, irreverência, em cada música. Queria não dormir e ficar com o disco ecoando no travesseiro. Recomendo. Sara dores de cabeça, mau-humor e decepção com o que a sociedade de consumo tem oferecido para nosso ouvir.
Digo experiência atrasada porque posso estar falando a quem já fez isso há muito tempo, várias vezes. Eu não: só agora ouvi Sgt. Pepper's decentemente. Sem exageros, só agora ouvi, de fato, o disco.
Por que Sgt. Pepper's é um marco na história do rock, talvez da música?
Porque Sgt. Pepper's é um marco na história do rock, talvez da música.
Há o pioneirismo dos Beatles em incluir nas faixas sons de platéia, animais, instrumentos de orquestra etc e tal. Sem falar na arte da capa. Não sou músico ou estudioso musical para assinalar o quê, exatamente e em detalhes, os Beatles fizeram ao realizar o disco. Falo da minha experiência, aos 26 anos e sem ter visto os Fab Four tocarem juntos, de ser abençoado com qualidade que vai além de gostar ou não. É isso que quero descrever.
Sim, é delicado. Alguns crêem que gosto não se discute (muitas vezes pra justificar um gosto ruim sem dar vergonha de assumi-lo, mas deixa pra lá); outros, pensam que comer o filé mignon depois do patinho só dificulta o retorno ao patinho. Vou pela horrorosa metáfora via açougue. A gente ouve de tudo nessa vida. Mas ouvir Sgt. Pepper's é perceber que você se encontra em outro nível. É dar de cara com a produção de algo que faz diferença na tua vida. É perceber que quatro caras podem modular a voz, chiar com umas cordas e batidas e isso soar como nova Música, com maiúscula.
Você ouve e quer que a Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club band toque no coreto da praça em frente à sua casa. É abrir a janela e ver Lucy in the Sky with Diamonds assim que o sol nasce. É querer reunir todos os seus amigos, em todo planeta e de todas as épocas, e declarar pra eles With a little help from my friends (e a nossa voz tem que sair igual à do Ringo). Saber que existe o disco é ver que as coisas estão Getting Better, qualquer coisa é só ficar Fixing a Hole que tudo se resolve bem.
E pára tudo e chora tudo: She's leaving home. Como os Beatles conseguiram condensar todo o sofrimento humano com a indiferença alheia - e suas conseqüências - em curtos versos? Como encontraram a melodia perfeita, o coro em separado (poesia genuína e vinda "da veia") com a métrica ideal? Gente, é de pasmar. Sentimo-nos culpados por She's leaving home, sentimos pena, torcemos por ela, dizemos "Bem-feito!" para nós mesmos ao final...
Não acabou: Mr. Kite, um engraçadinho que cruza o nosso caminho, e depois imaginamos When I'm 64. Paul já passou da idade, mas pareceu desafiar a física quântica: ele não está fora de nosso tempo, não? Cantar isso bem antes de ter 64. Queremos estar lá também, precisamos dele, ele nos alimenta. Lovely Rita nos dá Good Moorning, Good Morning e que belo começo de dia!
Mas volta a banda. Sgt. Pepper's novamente, em tom de despedida. Cara, o CD está aqui na mão, posso tocar quantas vezes quiser, mas eu me desespero por eles dizerem que vão embora! Que negócio é esse? Mera reprise é que não é. Aliás, Sgt. Pepper's nunca será repetição pura e simples, cada audição é um impacto diferente. Talvez daí venha o desespero. Mas as notícias de A day in the life são o tiro de misericórdia, sem misericórdia. Acabou. Você não é mais o mesmo.
Sgt. Pepper's não é mais um disco, morrem os gostos e toda discussão a respeito, reverências a postos. Ouvir outra coisa? Eu mereço mais que isso.