segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Morro da Conceição, enfim. Na volta, pipas

Correr a etapa Porto Maravilha do Circuito Rio Antigo no domingo passado foi um prenúncio. Conheci a nova-velha Praça Mauá e novamente, de relance, vi o Morro da Conceição logo ali, um dos lugares aonde nasceu o Rio de Janeiro. Outra dívida pessoal a ser paga um dia, pois nunca tinha ido - até então. Bota na conta do Mujica.


Meus sogros são habitués do Morro da Conceição: já foram várias vezes, sozinhos ou ciceroneando metade da Bahia. Já subiram a escadaria que sai da Praça Mauá, assistiram rodas de samba, encontraram escritores. Eles têm história pra contar, e contam de um jeito que você se encolhe todo  quando lembra que nunca foi lá. Shame!

Pois no ano passado eles apareceram no Fim de Semana Literário do Porto - o FIM, cuja edição 2015 aconteceu nesse domingo, sempre no Morro da Conceição. E agora eu lá estaria, porém dessa vez convocado. A Editora 5W teria um estande e chamaria seus autores para comparecerem, trocarem ideias com outros colegas e leitores, talvez até autografando um livro recém-comprado.

Portanto, se há um responsável direto para que eu finalmente conhecesse um pedaço vital da história do Rio de Janeiro, ele se chama José Mujica.


Montei meu kit de sobrevivência para o FIM: protetor solar, Guimarães Rosa e uma caderneta para anotações. O verão carioca, já mostrando suas garras num sol de lascar couro, me acompanhou até descer na estação de metrô. O subsolo raso porém suficiente pra me proteger. Em seguida, o choque térmico básico e multinacional: vagões feitos na China trazendo um ar condicionado da Sibéria e desafiando nossas bermudas e sandálias carioquíssimas.

Saí do frigorífico na estação Uruguaiana, e parecia ter entrado em outra dimensão. Não só um calor abafado como um forte cheiro de churrasquinho de rua já impregnava toda a plataforma. Quanto mais a escada rolante subia, mais o gato chiava na chapa. Ao sair em meio ao camelódromo, uma faixa exortava os consumidores contra os perigos da concorrência dos ambulantes: "Compre apenas nos boxes. Não seja enganado!". Pra quem conhece o lugar, sabe que o aviso também poderia valer para os próprios boxes...

Segui pela rua Uruguaiana e atravessei as quatro pistas da Avenida Presidente Vargas com o mínimo de trânsito. A continuação cortava a Marechal Floriano e desaguava na rua Acre após cinco minutos de caminhada. Uma kombi especial para o evento fazia ponto em frente ao número 98.

Além de mim, um casal (a Marília Lamas, também autora, e seu namorado) e uma adolescente subiriam para o Morro na kombi. Sentei no banco do meio, ao lado da janela esquerda. A adolescente, ao meu lado, perguntou ao motorista se podia fechar a porta assim que o motor foi ligado. "Não, é pertinho!". A adolescente voltou para seu smartphone ao lado da porta escancarada enquanto a kombi subia ziguezagueando, seguindo o curso da rua Major Daemon. Por via das dúvidas, segurei firme no beiral da janela.


Já na subida o morro lembra o bairro de Santa Teresa, porém mais simples. Nenhum prédio ou mansão, casas de até dois andares apenas, todas elas bem cuidadas, não se vê uma pichação ou lixo na rua. Ao descer da kombi, após o quartel do exército, vejo os estandes das editoras. Não demora 5 minutos para que eu já arranje um Drummond por dez reais e me segurava para não cair em mais tentações.

A rua de paralelepípedos segue até uma praça central, que conta com mais casas residenciais e um galpão, aonde aconteciam os debates da programação do FIM. Todas as fachadas pareciam recém-pintadas, o silêncio só era cortado pela conversa dos frequentadores da feira literária. Fiquei logo imaginando como seria morar ali.

A sensação de ter voltado ao passado era presente. Nenhum ônibus passava, não percebi antenas parabólicas, nenhum estabelecimento além das "casas simples, com pessoas na calçada" cantadas por Chico Buarque. Pra completar, vi duas crianças num beco da rua Jogo de Bola brincando de carrinho de rolimã.

Porém é só se achegar numa viela em um dos lados da praça para dali avistar a ponte Rio-Niterói, os novos prédios sendo construídos em torno da Praça Mauá que, ao final do Morro, apresenta aos transeuntes o Museu de Arte do Rio e o Museu do Amanhã, a ser inaugurado num amanhã próximo. Contrastes a poucos metros, tudo Rio de Janeiro a nosso alcance.

Acompanhei um pedaço do debate de voluntários que fazem oficinas teatrais no hospital Nise da Silveira, combatendo a desumanização dos tratamentos psiquiátricos. Uma das debatedoras, exaltada, defendia seu ponto de vista com a experiência de ter um irmão surdo e com transtorno mental. Outro contava como descobriu um paciente que compunha músicas mas há 40 anos não assinava sequer seu nome. Logo mais eles fariam um desfile-performance em que um dos atores, sem uma perna, parecia ser um dos pacientes contemplados pela oficina.

Resolvi fazer a visita guiada no quartel, chamado de Fortaleza da Conceição. Bem recebidos por uma soldado que parecia nervosa com a tarefa de guia turístico, fomos levados até à biblioteca do local (de acústica perfeita e cheirando a livros muito antigos) para assistir uma apresentação sobre o local. A soldado se postou à frente de um laptop conectado a um datashow. Seus dedos tremiam ao passar os slides.

A apresentação foi um capítulo à parte. Imaginem o Exército trazendo uma historiografia oficial com desenhos feitos por uma caprichosa criança de 11 anos e usando a fonte Comic Sans, compondo uma apresentação em Powerpoint com o áudio do narrador previamente gravado. Tudo contemplado por vultos das Forças Armadas que pendiam nas paredes, como o Marechal Mascarenhas de Morais, líder das Forças Expedicionárias Brasileiras na 2a. guerra mundial.

Mas a pesquisa era boa. Ali soube como o Morro da Conceição, junto de outros três (Castelo, Santo Antônio, São Bento), foi a origem da cidade e aonde fortalezas militares foram erguidas diante do risco constante de invasões. Aliás, o Rio começa pelos morros porque à época já apresentava terrenos alagadiços no nível do mar... E naquela fortaleza até hoje funciona a Divisão Cartográfica do Sudeste, cujos mapas do território brasileiro são usados até nos preparativos de segurança de grandes eventos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas.

Reencontrei duas amigas que há muito não via, uma designer e a outra advogada, que com muita alegria levou um "Mujica" autografado pra casa. Apertei a mão de um dos maiores chargistas brasileiros, Cassio Loredano, a quem tietei com honra. Ainda dei um depoimento para os organizadores, fazendo um (recomendado) merchan do meu livro. O FIM foi uma ótima experiência.

Loredano levou pra casa o filho do Freud

Desci a rua que havia subido de kombi. A mesma calmaria, com vários gatos na calçada me encarando como intruso. Voltar à esquina com a rua Acre é atravessar de volta o "portal": dou de cara com um grande estacionamento cheio, a pista asfaltada, logo surge a Presidente Vargas e a civilização pós-Pereira Passos.

Saltei na estação de metrô do Estácio, que se encontra numa grande praça recreativa entre a Prefeitura e o morro de São Carlos. Deu tempo de ver mais uma face inédita (pra mim) do Rio: domingo à tarde é dia de empinar pipa. Eram dezenas de pessoas na praça e nos arredores com seus respectivos papagaios disputando espaço no céu.

Alguns haviam trazido até uma cesta de piquenique para passar o dia. Uma moça, talvez acompanhando um dos "competidores", sentava num canto, emburrada. Um vendedor de rabiolas anunciava em faixa (era dia de faixas alertas, pelo visto): "Quer ouvir um NÃO?", esclarecendo a política de fiados.

Caminhei até a rua do Matoso para finalmente dar o dia por encerrado. Não imaginava que duas de minhas paixões (correr e escrever) poderiam entrecruzar-se com meu desejo de descobrir o Rio de Janeiro sem mais delongas. Esses achados quase sem querer são o tempero do "gostinho de quero mais" pra gastar mais sola no solo carioca.

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