Meu avô e Ary Barroso
Quem teve a oportunidade de estudar História da Comunicação teve conhecimento das sociedades pré-escrita, ou sociedades orais. É tão difícil para nós hoje pensarmos que existiu uma sociedade assim, não é? Sem leitura ou anotações em papéis, coisa tão vital pra gente. Fiquei mais "encucado" foi com a questão da memória histórica. Se não havia registro, como os mais novos saberiam de suas origens, de seus ancestrais? E se assim era, como hoje sabemos que as sociedades orais existiram?
Os anciãos das tribos eram os responsáveis pela manutenção dessa memória. Por haverem presenciado os eventos - ou, ainda jovens, ouvido de outros anciãos da época - repetiam diariamente, várias vezes, a trajetória de seu clã para os mais novos. E isso era tão forte que em pleno começo de século XX tais sociedades ainda existiam, bem como sua prática. Assim, os antropólogos de nosso tempo tiveram contato com os pré-escrita e, em tempos de escrita consolidada, nos transmitiram o conhecimento que hoje acessamos em História da Comunicação.
Tudo isso me veio à mente ao ouvir um programa em homenagem ao centenário de Ary Barroso, no dia 7 desse mês. (Não é muito difícil concluirmos que o rádio, hoje, é o meio de comunicação mais próximo da prática de memória das sociedades orais). E naquele programa o jornalista Luiz Mendes (um ancião repórter de rádio) narrou vários episódios da vida do amigo e colega de trabalho Ary Barroso.
Falou que Ary era flamenguista doente, e não escondia isso nas narrações dos jogos; que, por não possuir voz potente como os demais radialistas, na hora do gol tocava uma gaita em vez de gritar; que, mesmo sendo mineiro de Ubá, foi o maior propagandista da Bahia e do carnaval brasileiro no mundo - vide "Aquarela do Brasil". E outras histórias.
Acontece que tudo o que Luiz Mendes disse, eu em meus singelos 23 anos já sabia. Isso porque meu avô, desde minha adolescência, encarregou-se de me contar, repetindo diariamente e várias vezes, as histórias de Ary Barroso. Ele fazia isso com diversos assuntos, desde que lesse ou visse algo que o lembraria de determinado episódio que viveu ou testemunhou. Sim, meu avô era a sociedade oral encarnada. Ali, do meu lado, estava parte da História da Comunicação resumida em 82 anos.
Os motivos pelos quais ele tanto me contava e recontava as histórias são vários. É certo que, em determinada idade e dependendo do temperamento da pessoa, ela vai falar apenas de fatos passados, pois a expectativa de realizar coisas novas é remota. Se viveu eventos além do normal, mais ainda. E meu avô, marinheiro sobrevivente de um incêndio em um navio e ex-combatente da 2ª Guerra Mundial, dentre outras coisas, ficava à vontade para falar de seu tempo. Diante de um ouvido atento e amoroso como o meu, imaginem.
Deixei para escrever este artigo hoje, dia 29, por fazer um ano que meu avô nos deixou. Mas se sua presença física já não é possível, o adjetivo inesquecível cabe aqui. Não só pela afeição saudosa como pelas narrações pessoais que perpassam o tempo. Como os guardiães da memória nas sociedades orais. Ironicamente, eu, leitor voraz e tentando realizar minha vocação para a escrita, agradeço a Deus por ter "viajado no tempo" e conhecido melhor do que ninguém as origens da comunicação entrecruzando-se com minhas próprias origens.
Por meio de meu avô sinto saudade de um tempo que, mesmo não tendo vivido, vivi. Uma "saudade misturada", sentindo falta de um ente querido e de um passado distante. Subitamente, as letras não fazem mais sentido. E nem me importo.
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