quinta-feira, 12 de agosto de 2004

O melhor do Brasil é a propaganda

Quando o presidente da república disse que o povo estava carente de heróis, surfando na onda da campanha "O melhor do Brasil é o brasileiro", da Associação Brasileira de Anunciantes, foi aquela grita. Críticas e apologias invadiram os jornais. Cada colunista sentiu-se instigado com vara curta a replicar. Eu idem, mas a enxurrada de opiniões foi tamanha que me deixou inibido. Contudo é indiscutível o talento dos anunciantes tupiniquins: conseguiram que o líder da nação fosse seu garoto-propaganda, e de graça!!

Os colunistas em geral refletiram sobre a necessidade de se ter heróis, até que ponto isso é benéfico para a conscientização do povo, para a cidadania. E que tipo de herói? O assunto rendeu por vários dias. Mas só agora pude assistir na TV os filmes publicitários que narram a vida de Ronaldinho e Herbert Vianna como exemplos de brasileiros que não desistem. Como espectador e já distante da polêmica à época do lançamento da campanha, uma pulga despertou e ainda está lá, no cantinho da minha orelha.

Nos anúncios a trilha "Tente outra vez", de Raul Seixas, encaixa-se perfeitamente com as histórias dos heróis brasileiros. Elas são contadas por meio de manchetes de jornal e pequenos filmes mostrando o calvário do cantor e do jogador, até o fim apoteótico de sua recuperação e conseguinte vitória. Fechando, o slogan: "Eu sou brasileiro e não desisto nunca".

Não quero cair na insensibilidade cretina de relativizar o drama de Ronaldo e Herbert. Eles e suas famílias (muito mais que os fãs, muito mais que a imprensa) é que sabem da dor sofrida. Mas o slogan acaba tornando-se quase ofensivo para a grande massa de brasileiros que pretende alcançar. A questão aqui é a diferença de realidades.

E se Herbert Vianna, após socorrido do acidente, fosse levado a um hospital público? Se pegasse aquela longa fila onde só os baleados pela violência (em geral das áreas mais pobres) têm prioridade? Durante o período de reabilitação, Herbert ficou sem gravar ou fazer shows. Ou seja, parou de trabalhar, ficou desempregado. Ainda bem que tinha família, dinheiro investido, direitos autorais rendendo etc. E, claro, ficou com hospital e fisioterapeuta particulares.

E se Ronaldinho não fosse "o" Ronaldinho? Se ainda estivesse iniciando sua promissora carreira no São Cristóvão ou no Cruzeiro (seus primeiros times) e sofresse a grave contusão no joelho que o deixou dois anos parado? Também temporariamente desempregado. O clube arcaria com tudo? E sua família, que dele também dependia, seria assistida pelos responsáveis cartolas de nosso futebol brasileiro? Será que, após marcar aquela consulta no SUS, daria tempo de Ronaldinho começar a fazer fisioterapia e se recuperar, pro bem da seleção?

Para Ronaldinho e Herbert, com os recursos materiais que possuíam à época de seus terríveis problemas, fica fácil abrir aspas e dizer que é brasileiro e não desiste nunca. Aí está a ofensa: se a grande massa da população não tem como obter os mínimos direitos humanos básicos como saúde, educação e renda digna, a opção mais fácil sempre é desistir. Mesmo assim, ele prossegue. E vem uma campanha dessa e larga a palavra de ordem, quase uma bronca: se você é brasileiro, não desista, nunca. Disso ele já sabe...

Nas entrelinhas: não desista, apesar de seus governantes. Não desista, apesar da corrupção que suga o dinheiro público. Não desista, apesar dos inúmeros recursos que a justiça permite aos "peixões", ao contrário do preto-pobre-miserável-ladrão-tem-mais-é-que-morrer. Não desista, apesar de viver em condições sub-humanas, apesar de seu trabalho escravo, de seu salário-mínimo, de sua absoluta falta de opções para sobreviver a não ser resignar-se em ser explorado.

Uma campanha para levantar a auto-estima do brasileiro? Não da maioria. Da minoria, talvez? Então é um mimo, no final das contas. Um mimo para quem já tem o que precisa, é isso. Que ainda consome bastante, e esse não pode pensar em desistir, em deixar de gastar seu dinheiro em muita coisa vã. Afinal, é uma campanha da Associação Brasileira de Anunciantes!

É uma pena (mais uma!!!) que o presidente que mais conhece a realidade popular tenha protagonizado essa ofensa em cadeia nacional.

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