segunda-feira, 10 de outubro de 2005

Arestas do referendo

Como você, eu não agüento mais. Não agüento mais os exaltados defensores do NÃO, nem os artistas globais defensores do SIM. Não agüento mais ter que desconfiar de tudo e de todos para tentar perceber o que está por trás do referendo, quais as reais intenções e as possíveis conseqüências de meu voto... Não falo aqui de alienação, mas de uma saturação que não gostaria de estar sentindo, mas sinto.

Os políticos não quiseram assumir esse ônus para seus mandatos e mandaram o povo escolher e também arcar com as conseqüências. Não quiseram esse desgaste das responsabilidades a assumir antes, durante e depois do referendo, e de repente resolveram exaltar a democracia. Nossos impostos públicos também pagam as milhares de vantagens e assessores descabidos, e nem por isso somos levados a decidir diretamente os destinos de tais verbas...

É o que o referendo está mostrando a todos nós, na verdade: a questão central não é o fato de andarem armados ou desarmados, se a violência vai aumentar ou diminuir, quem é conservador ou liberal. O que a experiência do referendo revela, antes mesmo do escrutínio, é a nossa adolescência democrática. Estamos na puberdade cidadã.

Nossa Constituição faz 18 anos, as primeiras eleições diretas, 17. Por mais precoce que um jovem possa ser, ele passa pelas crises de identidade, responsabilidade e maturidade. O fim da infância, embora ainda não tenha chegado à fase adulta. Dificuldade na hora de tomar decisões que trazem frutos para o resto da vida, terror ao começar a se dar conta de que fazer escolhas significa antes de tudo abrir mão de outras. A inabilidade inicial com as ferramentas que dispõe também é característico da idade.

E cá está o referendo, um instrumento de democracia direta (sem mediação de eleitos) em meio à nossa democracia representativa (com mediação de eleitos). Por que não usá-lo mais vezes? Por que tanta divisão - e desinformação muitas vezes - na hora de discutir e decidir? Como um adolescente que ainda não entende como funciona seus hormônios e ali estão eles, fazendo parte de seu corpo, somos nós com nossa democracia recente e exigindo que demos conta dela.

Levando-se em conta a baixa credibilidade de nossos representantes no Congresso e o desgosto de muitos pela política (agravado pela pasteurização moral do único partido que ainda apresentava-se como alternativa), a democracia teria direito de sobrevida? Chegando só agora à maioridade, estaria ela apta para lidar consigo mesma e com as conseqüências de suas ações?

É esse o contexto de nosso referendo. Nas eleições corriqueiras, muitos votam para em seguida esquecer em quem votaram, como se tivessem repassado rápido uma chata responsabilidade para uns poucos em Brasília. Tal e qual um inconstante adolescente, ficamos indignados quando os eleitos são flagrados nos deslizes de ética etc., a despeito de nossa irresponsabilidade ao votar.

Agora, para decidir se o comércio de armas continua ou não, discutimos uns com os outros sem perceber que o referendo é a melhor maneira de muitos políticos lavarem as mãos em público, para o público e fazendo o público sorrir pensando que conseguiram uma grande vitória. Tal e qual um adolescente, após essa empolgação toda podemos nos frustrar como ao levar o "fora" de um grande amor.

Afinal, o artigo divaga sobre democracia e referendo para chegar aonde? Não sei. Não é meu objetivo recomendar o voto no SIM ou no NÃO, embora ache que o leitor tem o direito de saber de onde me dirijo: voto SIM, por várias razões elencadas pela Frente Brasil Sem Armas. Mas a minha maior preocupação é que o referendo se tornou a nossa maior preocupação, e que ano que vem corre-se o risco de não termos a menor preocupação diante dos que não têm a menor preocupação com o sentido e a responsabilidade de um cargo público.

E teremos gastado toda a nossa energia e desejo de qualificar o debate e depurar nossa crítica somente quanto às armas. E seguiremos desarmados politicamente e prorrogando nossa adolescência democrática para que nossos supostos tutores em Brasília nos confundam ainda mais em nossa identidade como nação.

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