sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

À mesa

É muito estranho sentar à mesa com um estranho e ter que tratá-lo como estranho. Almoçar sozinho proporciona essa experiência, em que até olhar pra pessoa pode ser constrangedor. E estranho. A experiência pode ocorrer em vários restaurantes das metrópoles, a cada dia mais impessoais (e anti-pessoas). Depois de um tempo na fila do Delírio Tropical, no Centro do Rio, e passar pela "linha de montagem" de pratos, me acomodo no térreo. A mesa é para dois, e por enquanto estou sozinho.

À minha volta estão várias outras mesas mínimas, na sua maioria com duplas que se conhecem e travam diálogos fluentes. O restaurante é muito frequentado por mulheres na casa dos 30 anos, e o meu redor comprova essa média. Homem é coisa rara, talvez por preferirem a culinária "ogra" e terem preconceito com três andares dedicados a saladas.

Uma das paredes é quase toda um espelho. Ouvi dizer que colocar um deles dá a sensação do ambiente ser maior do que é. Não sei se é essa a intenção. A mesa tem uns mosaicos coloridos e é sobre ela que coloco minha bandeja, meu prato e começo a comer.

Pra onde olhar enquanto mastigo? Estou tão próximo das demais duplas que poderia opinar nos assuntos levantados, numa situação parecida com a que vivo em metrô lotado. Mas isso é socialmente impróprio, um desconhecido querendo se meter em conversa alheia é no mínimo inconveniente.  "Sem noção" ou maluco, como tantos que sabemos existir.

Curiosamente, a dissimulação é o traquejo social recomendado. Finjo não ouvir o que está sendo dito ao meu lado (impossível) e mantenho a cara de paisagem para não reagir às informações postas a público, ainda que num ambiente pretensamente reservado de dois conhecidos. É preciso mentir para si mesmo agora, vejam só.

Até que um outro homem pede licença e senta à minha frente. É a partir desse momento que surgem as reflexões que agora transcrevo. Se já era difícil cumprir todo o requerimento social com mesas à minha volta, como fazê-lo com um desconhecido que divide o mesmo metro quadrado que você?

Olho para o prato, reparo em todos os pormenores de minhas saladas, mergulho o garfo e levo à boca. É o máximo de pretexto que obtenho para ignorar minha dupla. Se resolvo jogar tudo para o alto e me acomodar com a coluna a 90 graus, meu olhar estará fitado no homem. Para não dar margem a quaisquer interpretações equivocadas, ordeno que minhas órbitas orbitem por todo lugar, menos que fiquem paradas encarando.

Que tal puxar conversa, só pra não ficar esse constrangimento no ar? Há o risco de ser mais constrangedor ainda. Sustentar uma superficialidade verbal só pra evitar o desconforto impessoal?
Não agrada, nem convence. A partir daí o dilema é quanto à velocidade que você come: mais rápido pra encurtar o constrangimento ou sua digestão não tem nada a ver com essa neura social?

Acabo primeiro. "Com licença", é o máximo que dizemos, também por ser a etiqueta requerida. Deixo a mesa e vou pra outra fila, agora do caixa. Fica a sensação de que estamos aprisionados por tantas convenções sociais, alimentadas pela impessoalidade crescente e desejada. Uma refeição devia ser um momento de respiro, de desfrute despreocupado do apetite, e não tudo isso.

Não é o fim do mundo. Mas é estranho.


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