quarta-feira, 2 de abril de 2014

A prova de direção e o teatro da vida

Você aprende a dirigir e a estacionar tendo que assimilar um milhão de detalhes que até então lhe eram desconhecidos. E inúteis, pois você era um reles passageiro. Se já é complicado pilotar uma máquina de uma tonelada em velocidade sem virar criminoso involuntário, pior é fazer a prova de direção. Ali eu percebi como em muitas ocasiões de nossa existência terrena necessariamente precisamos nos tornar meros atores.


Tudo é um grande cenário: primeiro você estaciona em meio a gravetos que não dão ideia alguma de como é um carro na vida real. Depois faz um percurso sem passar de 40 quilômetros por hora mesmo usando a terceira marcha, coisa que a gente diria "só em filme, mesmo". Aliás, somos filmados por microcâmeras o tempo todo, para - dizem - facilitar a transparência do processo.

Os examinadores são a exígua plateia para quem você fará a performance no palco de quatro rodas e asfalto. Uma plateia difícil: são instruídos a serem indiferentes, a não ser que você esqueça alguma "fala". Humanos como nós, estão sujeitos a humores que podem alterar seu senso crítico. 

Mas seus companheiros de viagem também são um júri popular: é a partir do vaticínio deles que você poderá ou não entrar em cartaz por várias temporadas. Pode-se considerar a prova como aquela primeira exibição do filme, cujas reações do público direcionam as futuras decisões sobre o projeto.

A exigência de qualidade é dupla: você precisa ser um ator ruim e perfeito ao mesmo tempo. Ruim porque tudo o que deve ser feito precisa ser sublinhado quase literalmente, pior do que em peça infantil. Exemplo: você não deve apenas olhar os retrovisores, deve virar a cabeça e esticar o rosto como que pra gritar ao examinador, feito um louco internado, "OLHA, TÔ OLHANDO!". E coisas do tipo.

Porém você precisa ser perfeito, acertar tudo como nem o melhor motorista acertaria nos seus melhores dias. Ok, há um máximo de pontos que você pode perder. Mas em que trânsito do mundo beliscar a linha do meio-fio é um erro tão grave e consequente a ponto de ser eliminatório numa prova? Que aluno que acabou de aprender a pilotar uma tonelada em velocidade não deixará o motor morrer? Por que a seta vira uma guilhotina?

O parágrafo acima pode parecer de aluno que não estudou pra prova e reclama da crueldade do professor. Não, longe de mim justificar qualquer fracasso. O que me espanta é que uma prova de direção seja tão fora da realidade do trânsito, quiçá humana.

No entanto, de nada adianta criticar, resmungar ou denunciar tal hipocrisia. Se você quer a habilitação para dirigir, precisa passar por tudo isso, e fazer exatamente o que é pedido. Encarne o papel do motorista perfeito por apenas 20 minutos que você consegue.

Quantas vezes a gente enxerga a hipocrisia da situação, o absurdo das exigências para conseguir algo de que necessitamos e/ou ou desejamos, os papéis que precisamos desempenhar, a diplomacia forçada e vemos que não há escolha? Vestibular, mundo corporativo, prestação de serviços... Pense aí no seu exemplo. É a vida te ensinando que determinados fins exigem determinados meios, e ponto final.

Como diria Belchior, só nos resta viver essa divina comédia humana, onde nada é eterno. Nem uma carteira de habilitação.

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