“Homem de pouca fé, por que duvidaste?”
O absurdo tinha acabado de acontecer.
Encurralados por uma multidão de no mínimo cinco mil pessoas
(não contaram mulheres e crianças) famintas após ouvirem Jesus pregar por
horas, os discípulos podem ter sentido uma ponta de desespero ao ver que não
havia absolutamente nada para oferecer como alimento. Não sei se chegaram
a se perguntar se essa era uma obrigação deles, já que foi a escolha de cada
ouvinte seguir Jesus e ficar ali direto. Será que não imaginavam que ia durar
tanto, e assim nada trouxeram de farnel?
De todo modo, os discípulos se deram conta da situação e
chegaram a avisar o Cristo. "O lugar é deserto, já está tudo fechado a essa hora,
encerra o dia, mestre". O que acontece depois pode servir de explicação pros
assessores diretos de pessoas em cargo de liderança nunca levarem notícias
ruins ao chefe. “Ué, vocês deem um jeito de alimentá-los”. Eu fico imaginando a
cara dos discípulos ao ouvir isso. Só restou informar o que tinham à mão, num
misto de honestidade e de reafirmar o que tinham dito
antes. “Não temos nada além de cinco pães e dois peixes”. E Jesus manda trazer
assim mesmo.
A Bíblia não conta, mas imagino o discípulo indo lá buscar
os pães e peixes pensando que diabos (opa!) Jesus ia inventar agora. “Quero só
ver, essa comidinha pra todo mundo... O mestre tem cada uma! Custava falar
menos? Custava mandar a galera mais cedo pra casa?”. O “quero só ver” tem um
quê de desafio, mas também de dúvida. Se quisermos nos ater à narrativa
bíblica, a dúvida já está na resposta dos discípulos: “não temos aqui senão...”.
O que tinha não dava pra todos nem em sonho - não dava pra acreditar que desse.
Lá vai Jesus, olha pro céu, abençoa os alimentos e os
discípulos só de olho, desconfiados. O que se viu a seguir talvez fosse bem
representado nos dias atuais por um GIF animado com Jesus repartindo os pães e
peixes, os discípulos entregando e assim um moto contínuo inacreditável até que
todo mundo ficasse satisfeito. Veja bem, não foi um pedacinho pra cada um
tentar enganar a fome. A Bíblia fala que geral se saciou. E como se fosse Jesus
dizendo que não brinca em serviço, ainda sobraram doze cestos cheios.
O que os discípulos estariam sentindo nessa hora em relação
às suas dúvidas anteriores? Vergonha, humildade por terem aprendido algo,
traços de humanidade que se mostravam limitados diante da intervenção divina?
Difícil saber. Mas que rolou a dúvida, rolou. Uma dúvida que estava convivendo
com a mesma fé que os fez largar suas vidas cotidianas e seguir Jesus. A dúvida
que precedeu o absurdo.
Mas não parou por aí.
Jesus orienta os discípulos a entrarem no barco e ir para o
outro lado enquanto ia se despedir da multidão. A Bíblia não fala da reação dos
discípulos nessa hora. “Pra que ir pra lá? Por que Jesus não vem conosco? Sei
lá, não vou nem falar nada porque a gente já achava que não ia ter comida e aí, foi aquilo, né?”. Lá vai o barco enquanto lá vai Jesus subir o monte porque deu
vontade de orar.
Daí que vem uma tempestade violenta e sacode o barco. E
Jesus resolve aparecer de madrugada, caminhando sobre as águas. Mesmo quem não acredita em
fantasma, pode confessar, o primeiro pensamento seria que fosse um. Os
discípulos não tinham Hollywood nem nunca viram o mestre aprontar uma daquelas. E
na madruga, no meio de ventos, raios, trovões e uma grande possibilidade de
naufrágio!
Aí ocorre o que considero o momento mais autêntico do ser
humano na sua relação com Deus. E com o qual me identifico plenamente.
Jesus tenta acalmar os discípulos e diz: “Fiquem de boa! Sou
eu, não precisam ter medo!”. No que Pedro responde: “Se é você mesmo, me chama
pra ir até aí, andando sobre as águas também!”.
A primeira coisa que sai da boca do discípulo é uma dúvida. “Se
é você mesmo...”.
Jesus manda ele vir, e Pedro vai. Os demais discípulos,
menos atrevidos, olham a cena. Sim, Pedro vai descer do barco em meio a uma tempestade.
Se tudo começou com uma dúvida natural, a recente decisão pedrina só podia ser
movida a fé. Esse paradoxo estará
presente em todo o episódio.
E Pedro anda sobre as águas!
Vai em direção a Jesus, cheidifé,
um passo após o outro contra as leis da Física e tudo o que a espiritualidade dos
discípulos conhecia até então. Não se sabe se Jesus sorria nessa hora.
Só que Pedro sente o vento, e vem o medo. A fé se esvai
diante das circunstâncias, ele começa a afundar, e o paradoxo se refina. Mesmo
em pura dúvida, Pedro clama (e só pode fazê-lo via fé): “Salva eu, Senhor!”.
Jesus estende a mão e fecha a conta: “Homem de pequena fé, por que duvidou?”.
Fé e dúvida presentes na mesma pessoa, na mesma alma, na
mesma psiquê. Enquanto afundava na dúvida, Pedro não deixou de crer. O fato de
crer não impediu que a dúvida viesse à tona. Em tempo de apologias de certezas
de tudo que é lado e ideologia, sou mais Pedro.
E tudo acolhido por Jesus assim mesmo, com a ressalva de que
uma fé em pouca quantidade pode menos do que o que passa a ser possível quando
se crê.
“Se isso tudo é verdade, então...”. Aí é que tá. Não há
garantias. Pedro só viveu o que tinha pra viver quando botou o pé fora do
barco. A fé não lhe permitiu nada além de confiar.
Ainda assim, acho tal processo assustador. Como ver um fantasma no meio do mar revolto de madrugada. E suspeito que tal paradoxo, essa cisão interior entre fé e dúvida, com ambas revezando-se alucinadamente, vai me acompanhar até o fim dos meus dias.
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