quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Ensaio sobre a dúvida


“Homem de pouca fé, por que duvidaste?”

O absurdo tinha acabado de acontecer.


Encurralados por uma multidão de no mínimo cinco mil pessoas (não contaram mulheres e crianças) famintas após ouvirem Jesus pregar por horas, os discípulos podem ter sentido uma ponta de desespero ao ver que não havia absolutamente nada para oferecer como alimento. Não sei se  chegaram a se perguntar se essa era uma obrigação deles, já que foi a escolha de cada ouvinte seguir Jesus e ficar ali direto. Será que não imaginavam que ia durar tanto, e assim nada trouxeram de farnel?
  
De todo modo, os discípulos se deram conta da situação e chegaram a avisar o Cristo. "O lugar é deserto, já está tudo fechado a essa hora, encerra o dia, mestre". O que acontece depois pode servir de explicação pros assessores diretos de pessoas em cargo de liderança nunca levarem notícias ruins ao chefe. “Ué, vocês deem um jeito de alimentá-los”. Eu fico imaginando a cara dos discípulos ao ouvir isso. Só restou informar o que tinham à mão, num misto de honestidade e de reafirmar o que tinham dito antes. “Não temos nada além de cinco pães e dois peixes”. E Jesus manda trazer assim mesmo.

A Bíblia não conta, mas imagino o discípulo indo lá buscar os pães e peixes pensando que diabos (opa!) Jesus ia inventar agora. “Quero só ver, essa comidinha pra todo mundo... O mestre tem cada uma! Custava falar menos? Custava mandar a galera mais cedo pra casa?”. O “quero só ver” tem um quê de desafio, mas também de dúvida. Se quisermos nos ater à narrativa bíblica, a dúvida já está na resposta dos discípulos: “não temos aqui senão...”. O que tinha não dava pra todos nem em sonho - não dava pra acreditar que desse.

Lá vai Jesus, olha pro céu, abençoa os alimentos e os discípulos só de olho, desconfiados. O que se viu a seguir talvez fosse bem representado nos dias atuais por um GIF animado com Jesus repartindo os pães e peixes, os discípulos entregando e assim um moto contínuo inacreditável até que todo mundo ficasse satisfeito. Veja bem, não foi um pedacinho pra cada um tentar enganar a fome. A Bíblia fala que geral se saciou. E como se fosse Jesus dizendo que não brinca em serviço, ainda sobraram doze cestos cheios.

O que os discípulos estariam sentindo nessa hora em relação às suas dúvidas anteriores? Vergonha, humildade por terem aprendido algo, traços de humanidade que se mostravam limitados diante da intervenção divina? Difícil saber. Mas que rolou a dúvida, rolou. Uma dúvida que estava convivendo com a mesma fé que os fez largar suas vidas cotidianas e seguir Jesus. A dúvida que precedeu o absurdo.

Mas não parou por aí.

Jesus orienta os discípulos a entrarem no barco e ir para o outro lado enquanto ia se despedir da multidão. A Bíblia não fala da reação dos discípulos nessa hora. “Pra que ir pra lá? Por que Jesus não vem conosco? Sei lá, não vou nem falar nada porque a gente já achava que não ia ter comida e aí, foi aquilo, né?”. Lá vai o barco enquanto lá vai Jesus subir o monte porque deu vontade de orar.

Daí que vem uma tempestade violenta e sacode o barco. E Jesus resolve aparecer de madrugada, caminhando sobre as águas. Mesmo quem não acredita em fantasma, pode confessar, o primeiro pensamento seria que fosse um. Os discípulos não tinham Hollywood nem nunca viram o mestre aprontar uma daquelas. E na madruga, no meio de ventos, raios, trovões e uma grande possibilidade de naufrágio!

Aí ocorre o que considero o momento mais autêntico do ser humano na sua relação com Deus. E com o qual me identifico plenamente.


Jesus tenta acalmar os discípulos e diz: “Fiquem de boa! Sou eu, não precisam ter medo!”. No que Pedro responde: “Se é você mesmo, me chama pra ir até aí, andando sobre as águas também!”. 

A primeira coisa que sai da boca do discípulo é uma dúvida. “Se é você mesmo...”.

Jesus manda ele vir, e Pedro vai. Os demais discípulos, menos atrevidos, olham a cena. Sim, Pedro vai descer do barco em meio a uma tempestade. Se tudo começou com uma dúvida natural, a recente decisão pedrina só podia ser movida a fé.  Esse paradoxo estará presente em todo o episódio.

E Pedro anda sobre as águas!

Vai em direção a Jesus, cheidifé, um passo após o outro contra as leis da Física e tudo o que a espiritualidade dos discípulos conhecia até então. Não se sabe se Jesus sorria nessa hora.

Só que Pedro sente o vento, e vem o medo. A fé se esvai diante das circunstâncias, ele começa a afundar, e o paradoxo se refina. Mesmo em pura dúvida, Pedro clama (e só pode fazê-lo via fé): “Salva eu, Senhor!”. Jesus estende a mão e fecha a conta: “Homem de pequena fé, por que duvidou?”.

Fé e dúvida presentes na mesma pessoa, na mesma alma, na mesma psiquê. Enquanto afundava na dúvida, Pedro não deixou de crer. O fato de crer não impediu que a dúvida viesse à tona. Em tempo de apologias de certezas de tudo que é lado e ideologia, sou mais Pedro.


E tudo acolhido por Jesus assim mesmo, com a ressalva de que uma fé em pouca quantidade pode menos do que o que passa a ser possível quando se crê. 

“Se isso tudo é verdade, então...”. Aí é que tá. Não há garantias. Pedro só viveu o que tinha pra viver quando botou o pé fora do barco. A fé não lhe permitiu nada além de confiar.

Ainda assim, acho tal processo assustador. Como ver um fantasma no meio do mar revolto de madrugada.  E suspeito que tal paradoxo, essa cisão interior entre fé e dúvida, com ambas revezando-se alucinadamente, vai me acompanhar até o fim dos meus dias.

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