A inscrição foi o fim de uma jornada de disciplina que havia começado em maio, quando eu contava três meses sem atividade física nenhuma. O corpo chiava sem dó. Magro sem massa muscular, trabalhando em escritório e escrevendo nas horas vagas não pode relaxar. Ou se sente velho cedo.
Não me animei de encarar a musculação novamente - ela foi uma das responsáveis por uma protusão lombar bem chatinha. E quase estraga-prazer: houve tempos em que eu não conseguia correr 10 minutos sem começar sentir dores nas costas que interrompiam a alegria. Não estava preparado para viver sem correr, e essa foi uma das motivações.
Reencontrei o pilates, que havia estranhado de início. Muito trabalho de respiração e um castigo semanal no abdomên, que tinha que ser capaz de amortecer os impactos na coluna (além do meu tênis, claro). As pernas também precisariam sustentar a audácia de querer retornar ao hábito que sempre me fez tão bem.
Mas nada disso aconteceria sem teimar. Como um burro diante da cenoura flutuando sacana na frente do focinho, era eu e uma corrida de rua. No meio do caminho muitas pedras pra carregar diante da procrastinação, da preguiça, do cansaço do dia, das mil desculpas que costumava inventar para não fazer exercício e dormir sem culpa.
4,2 km em meia hora. Já dava pra me inscrever no Circuito Light Rio Antigo, que sempre me atraiu por ser uma experiência diferente. Um outro olhar para paisagens do meu dia a dia no Centro da cidade, talvez até relembrando alguns lugares históricos que passam batido em meio aos compromissos diários.
Cheguei à Cinelândia lotada de gente de todos os tipos e idades se aventurando em corrida ou numa caminhada bem familiar (vários carrinhos de bebê à vista). Todo mundo com amigos e equipes formadas, que há muito devem treinar juntos. Estar sozinho ali foi uma experiência diferente em que me senti um flanêur entre os fanáticos por corrida.
Vi o imponente Teatro Municipal virando pano de fundo para o pódio. Vi ruas sempre cheias de tráfego reservadas para pedestres. Na Câmara de Vereadores, uma faixa anunciando que na véspera completaram-se dez anos da morte de Emilinha Borba, uma das rainhas do rádio brasileiro. A data era a mesma do aniversário da Petrobras.
Foi chegando a hora de nos aglutinarmos para a largada, na Rua Evaristo da Veiga, ao lado da Biblioteca Nacional. O locutor garotão (ou metido a) dizia que da próxima vez ia trazer uma gravação pra deixar rolando e vir correr conosco na pista, algo difícil de acreditar. Ele também divulgava o seu site, o que me fez pensar por que diabos eu iria no site de um locutor de "esquentas" pré-corrida.
Contagem regressiva. Perto da linha de largada, o pelotão profissa, aqueles que iriam disputar o pódio, já tinham sangue nos olhos. Eu fiquei uns 500m atrás, humilde com meu retorno a meros 5km. Começou!
Eu fazia questão de correr bem no meio da pista, aproveitando a boa nova da erradicação total dos carros em nome da "viação canela". Alguns apressadinhos cortavam as curvas pela calçada, algo que eu nunca faria. Se já me confinam por ali todos os dias...
Pegamos a Rua México, viramos na Santa Luzia para em seguida retornar até chegar à México novamente. Só passava pela minha cabeça que eu corria no meio da rua e na contramão a bordo de meu cockpit pessoal, transgredindo todas as regras, e que o sentimento era bom.
Seguindo pela Almirante Barroso até a Lavradio e retornando, o ponto de hidratação chegando bem na hora. O corpo começava a deixar bem claro que correr na esteira da academia é uma coisa, correr no asfalto é outra. O impacto é maior, o esforço de absorção e sustentação idem, o cansaço parecia querer me alcançar na próxima curva, era hora de dosar a energia.
Vi passando por mim um barbudo de camisa laranja correndo num ritmo forte e filmando a si mesmo com um celular. Mas não me pareceu exibicionismo. Sua fala era um desabafo feliz de quem parecia também retornar às corridas após passar por dificuldades. Ouvi algo como "pra quem achava que não ia conseguir" e muitos emocionados agradecimentos a Deus.
Avenida Rio Branco, Rua da Carioca, mais água por favor. Perto da Praça Tiradentes, as orientações diziam que o pessoal dos 5km devia virar à esquerda na República do Paraguai. Já no começo me senti no autódromo de Interlagos, na curva do Laranjinha. É uma subida que exige muito do carro, testando a potência do motor. A analogia serviu direitinho.
Subia e subia por trás do BNDES ultrapassando quem não aguentou e passou a caminhar - exatamente o que eu não queria que acontecesse comigo. Respiração mais ofegante, vem oxigênio, meu amor, a hora é agora. Já avistava os arcos da Lapa, limites do retorno testados até que veio a primeira recompensa: uma descida.
A malandragem da passada mais larga com todo o cuidado pra não se estabacar. Entrei novamente na Evaristo da Veiga e vi a placa de 4km completados. Faltava pouco, eu já avistava a linha de chegada e pensei em dar aquele "sprint", gastar todos os últimos cartuchos pra chegar apoteótico. Porém, havia uma curva para a Senador Dantas. Ainda não era o final!
Um passeio pelo Passeio e, na direção da Avenida Rio Branco, um grupo de corredores que já havia terminado nos incentivava: "Vamos, vamos! Já tá acabando! Vamulá!". Esse espírito solidário é uma das coisas mais bacanas que se vê em dias de corrida de rua.
Agora sim reta final. Passadas mais largas, o suor ratificando o que foi tudo isso, a Biblioteca Nacional só de olho, curva pra esquerda na Evaristo da Veiga, olho o relógio: 30 minutos cravados enquanto cruzo a linha de chegada, faço uma graça pro fotógrafo oficial, reduzo a velocidade, pego duas bananas, um Powerade de tangerina, a medalha de participação, panfletos de outras corridas e enfim, zero quilômetro.
O cansaço de depois de uma corrida é diferente dos demais cansaços. Você está fatigado porém inteiro. Sabe que não dava pra correr mais, porém com a sensação de ter feito tudo o que era pra fazer. O corpo e a mente celebram a parceria vitoriosa, agora em condições mais difíceis. Se há um espelho, dá vontade de cumprimentar quem você vê.
Desci para o metrô, aguardei uns 10 minutos até ele chegar, fiz a mesma viagem que faço todos os dias. Que graça tem isso? Bom mesmo é castigar os calcanhares.
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