Se é verdade que viajar nos ajuda a olharmos para o nosso próprio ambiente com outros olhos, posso dizer que um efeito colateral de Paris foi tentar fazer no Rio de Janeiro o que teimei em fazer lá. Para curtir minha semana na capital francesa, pesquisei as atrações culturais da cidade, planejei os trajetos e fiz questão de conferir o que pudesse com o tempo que dispunha.
Por que não fazer o mesmo na minha própria cidade? Por que me contentar com as mesmas rotinas e caminhos de sempre? O que há de escondido - ou tão escancarado - que estou deixando passar debaixo de meu nariz? Por que explorar uma cidade do outro lado do Atlântico e não o meu quintal?
Para sair de tal inércia, foi preciso uma dose de disciplina e desprendimento. Um sábado qualquer, sempre reservado a tarefas que não dou conta durante os dias úteis, agora era elevado a laboratório inaugural de uma nova fase de vida.
O local escolhido foi a Casa Daros, que no dia 13 deste mês fecha suas portas como museu. O destino fatal foi o que me chamou a atenção para a existência do lugar, coisa que me envergonha uns 20%. O que não me constrangeu nada foi procurar o melhor caminho pra chegar via Google Maps. Sim, é a minha cidade mas um novo espírito, pensando em aproveitar tudo da melhor forma possível.
Como artefatos indispensáveis, ter uma bermuda no figurino e um Guimarães Rosa a me acompanhar. Eu acabara de começar suas "Primeiras estórias", e andava assombrado com o escritor que foi tropeiro pra ser escritor e nos embasbacar com sua Língua Portuguesa tão particular quanto acessível.
Pra completar, um Belchior nos ouvidos enquanto o ônibus chegava a Botafogo. "Saiam do meu caminho/Eu prefiro andar sozinho/Deixem que eu decida a minha vida, iiihhh". O irônico é que até então nada nem ninguém obstruíam esse experimentar da cidade - a não ser eu mesmo.
Desci e, sem horário marcado, retomei o que aprendi em Paris: ser flanêur, caminhar sem pressa e sentindo cada canto da calçada sob meus pés, olhar curioso para tudo em volta. A rua da Passagem, que pra mim sempre fez jus ao nome, ressurgia sob o sol das 11 da manhã. As pessoas eram pessoas de fato, no bar, na oficina mecânica gourmetizada, na esquina com a rua São Manuel, que descobri ter sido um embaixador do império persa!
Aguardar o sinal sem pressa. Atravessar a rua sem desespero. Saber que são apenas mais alguns passos no curso de alguns minutos para chegar numa atração cultural em que meu único objetivo será o lazer. Parece tão bobo descrevendo assim, mas o sabor dessas coisas todas está suspenso ao carioca envolto apenas em casa-trabalho-casa. E ali estava eu, como que recuperando o paladar após a anestesia do dentista ter passado o efeito.
O dia ajudou a Daros. O prédio, reformado há dois anos, em tons claros, reluzia convidativo. O pé-direito alto já me conquistou assim que entrei. Perguntei quanto era o ingresso, e fui informado que até o dia de encerramento das atividades era gratuito. Quis saber o que a casa ia virar, será uma escola particular. Bom para os futuros alunos, ruim pra nós. E fui viver o canto do cisne.
Uma exposição de arte cubana ajuda a nos desarmarmos ideologicamente, como é quase instintivo quando ouvimos o nome do país. Diversas obras demonstram a personalidade autônoma e criativa de artistas que não precisavam de muito para serem dignos da última atração da Casa Daros. Uma das melhores obras era um exame de vista gigante, com as letras maiores primeiro até as menores lá embaixo, formando a frase "A vida é um texto que aprendemos a ler tarde demais". Uau.
Ao final, desci para conhecer o café e o restaurante, um subsolo disfarçado de térreo. Pedi meu café e fui seduzido por um bonito doce português recheado de fios de ovos. Ao mexer com a colherinha, mandei metade pra fora do copo e logo fui socorrido pela atendente, que ainda renovou minha dose sem eu pedir. Será uma pena ficar sem esse bom atendimento, que já tinha ouvido dizer que era exemplar.
Sentei e voltei a Guimarães Rosa. É indescritível. A palavra "famigerado" te conduz ao sertão mineiro e seus jagunços, enquanto sentimos o mesmo medo do narrador diante do acontecido. Se Clarice Lispector fazia "bruxaria" em sua literatura, Rosa é o encantador de serpentes - qualquer serpente.
Antes de passar pelo pátio interno, devagar como quem lamentavelmente se despede de vez, encasquetei. O sábado não podia acabar ali. O que mais o Rio me reservava que não inviabilizasse o resto do dia? Lembrei da Casa de Rui Barbosa, da qual tinha ouvido ótimas referências sobre o jardim e o museu, bem à beira da urbaníssima rua São Clemente. Se eu já tinha visitado? Nunca. Passado em frente a pé ou de ônibus? Zilhões de vezes.
Era 15 minutos a pé, mas o museu só abriria mais tarde. Determinado a caminhar, fui incentivado pela placa à frente do portão da Daros: "Rio a pé - Metrô Botafogo - 7 minutos". Obedeci e logo já dava de cara com uma dos poucos empreendimentos imobiliários recentes que dá vida ao seu local, e não o contrário.
O prédio construído ao lado da estação é daqueles que tem em seu térreo os mais variados restaurantes, de uma delicatessen metida a francesa a estabelecimentos com comida bem brasileira. Agora, desafiando a balbúrdia entrosada da Voluntários da Pátria com a São Clemente, encontra-se uma praça, com árvores e brinquedos. Ousadia maior em tempos gentrificados não há.
De novo o sofisma "por que em Paris e não aqui?" me assaltou. Fiz questão de sentar na mesa da calçada, de olho na rua, como tanto tentei fazer na Cidade Luz e só conseguira uma vez, no Café de La Paix, à frente do teatro Opera Garnier (que nosso Theatro Municipal emula em plena Cinelândia).
Pedi um chope enquanto aguardava a salada com carne desfiada. Já no calor de meio-dia e meia, embora na sombra, o primeiro gole é obrigatoriamente mais longo por necessidade. Já os demais, sem desassossego. Flanar sentado. Os moradores vindo da academia. Os turistas brasileiros e gringos. A criança pendurada na mão da mãe. A recepcionista contando ao garçom que havia esquecido que iria trabalhar no sábado e foi dormir às 4 da manhã, mesmo com dois filhos!
Esqueci de dizer que voltei ao Rosa. Quase chorei com a história de Sorôco, sua mãe e sua filha. Eu não sou o Guimarães, então só conseguia adjetivar aquela narrativa como "linda, linda, linda". Veio o prato, que desapareceu no mesmo ritmo em que atravessei as ruas nesse dia. A rua, as pessoas, o Rio. Agora sim, o meu Rio, pessoal e intransferível.
O mais que devido café. "A terceira margem do rio" foi a próxima estória, que assim como os lugares que me pus a visitar, já conhecia de ouvir mas não de viver. Não me arrependi, e acho que nunca mais verei alguém numa canoa da mesma forma.
Um senhor que fechou a conta antes de mim viu o livro sobre a mesa e fez questão de dizer como admirava o Rosa. Paguei, levantei e entrei naquela rua que pra mim sempre significou uma etapa a ser vencida para resolver alguma coisa. Não neste sábado. A São Clemente se despia como nunca o fez para mim. Seu comércio, suas novidades, seus literais moradores - aqueles que não tinham teto. Seus casarões teimosos em meio aos prédios já velhos. O morro de Santa Marta disputando com o Cristo Redentor as nossas atenções. Era o mesmo Botafogo que eu conhecia?
Então a Casa de Rui, o jardim. O absurdo silêncio a poucos metros da estreita e trafegante rua. Pais e bebês resistindo ao confinamento e ao digital apenas. Todos têm o direito a isso, não apenas o pessoal da Zona Sul, inevitável pensar. Não é ser bucólico, é ser humano. Um sopro de vida na vida de sempre, e estamos falando apenas de um jardim bem cuidado e aberto ao público.
Senti-me recompensado quando vi que poderia participar de uma visita guiada. Não há como reproduzir o que é o antigo lar de um dos maiores brasileiros de todos os tempos. Vá lá e procure saber a hora do tour com um museólogo, pois vale muito. Porém me dou o direito (e a emoção) de contar o que foi estar no primeiro cômodo do local.
Era um escritório em que Rui decorou com uma foto da conferência diplomática na cidade de Haia, na Holanda. Os móveis do local eram cópias dos mesmos utilizados pelo advogado na ocasião. E então o raio. Já contei aqui como meu avô era um adepto da história oral e como isso me acompanha até hoje. Ali lembrei de quando ele me contava que havia visitado a Holanda e sentado na cadeira da Águia de Haia (apelido dado a Rui por seu desempenho na conferência). Ele registrou o momento com uma foto que se perdeu, coisa que o angustiou para sempre.
Ali estava eu vendo a conferência, vendo a cadeira e, de certo modo, vendo meu avô em forma de memória viva. Embarguei, quase perdi o grupo de vista, por essa eu não esperava mesmo.
Não sabia disso |
Depois da viagem no tempo por meio de uma casa muito bem conservada e com histórias sem fim, era hora de voltar pra minha casa. Não precisei "lotar" o dia com um checklist de lugares a ser cumprido orgulhosamente - essa é a vantagem de explorar a própria cidade. Ao contrário do temporário destino turístico, ela estará sempre ali para você.
O Rosa foi me contando mais estórias enquanto os cariocas voltavam da praia confabulando no metrô. O exame de vista cubano me fez lembrar de uma consulta regular ao oftamologista. Vamos por sentirmos um incômodo na vista, uma dor de cabeça, alguma coisa não está nos conformes. Então o médico faz os exames e constata que o grau aumentou e que precisamos de novas lentes, pois essas não estão mais dando conta. É isso.
Um comentário:
Providente reflexão! Se eu já amava o Rio, depois desse post eu o amarei muito mais. O texto só explana, flana e comprova que não precisamos ir ver o Velho Mundo se ainda não enxergamos a beleza do que é nosso e está ao nosso dispor.
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