Como arrumar os livros na estante?
Rearranjos da cegonha fizeram com que a gente esvaziasse um quarto de qualquer jeito. Exercício de crítica e desapego: o que realmente é indispensável manter e ocupar espaço? Papeis, documentos, caixas, utensílios, pedaços de lembrança - tudo foi alvo do escrutínio.
A estante foi remanejada para a sala. Os livros, empilhados abaixo da janela, aguardavam comportadinhos minha chamada e o subsequente transporte. Então me veio a dúvida do começo do texto: que critérios a gente usa para expor nossa literatura sem pudor?
O "camarote" (a prateleira mais alta e com mais destaque) permanecia como antes: Carlos Drummond de Andrade e Fernando Sabino, meus genitores nas letras, com suas obras quase completas. Nem tentem sugerir nada diferente.
Nas prateleiras do meio os exemplares de minha esposa, pela praticidade de não ter que se esforçar para se virar em lugares mais altos ou mais baixos. Mas o que colocar no "horário nobre", isto é, as prateleiras que estão à vista da maioria das pessoas, sem esforço?
Fui colocando os romances de minha coleção, tentando unificar os autores. Afinal, romance é quase sinônimo de boa literatura ou de Literatura, conforme a tradição (ou o mito). Sim, há os ruins, mas romances são como os anciãos da tribo ou do clã: sem eles nada haveria depois.
Lá pra baixo tinha colocado as biografias, mas quando vi que o "Mujica" ficaria escondido, não curti. Elas ganharam um upgrade pro horário nobre.
Só que mesmo descartando livros e distribuindo-os em outras prateleiras, começaram os dilemas. Nos romances estavam José Saramago, Graciliano Ramos, Ítalo Calvino. Quando fui enchendo as prateleiras do segundo escalão, surgia um Jorge Amado ou um Gabriel Garcia Marquez. E aí percebia que tinha deixado no horário nobre um desconhecido ou um estrangeiro (o nacionalismo é um critério, admito). Nananinanão. E efetuava o devido rebaixamento.
Ou deveria organizar a estante esteticamente? Os livros com produção gráfica mais caprichada e mais novos ou conservados causando aquela bonita primeira impressão? Mas aí um Dom Casmurro "de raiz", grifado e relido várias vezes pelos últimos 20 anos ficaria no "porão". Ou mesmo um São Bernardo, tão castigado como as mãos de seu protagonista sertanejo. Esquece.
"Vivo com apenas o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade", disse o próprio José Mujica. É como tento olhar minha estante novantiga, rearrumada sob o esforço de fazer justiça e prestar reverência a quem merece.
Curioso é que livros são coisas, roubam nossos limites da vida física - mas promovem nossa liberdade imaginativa.
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