domingo, 19 de abril de 2020

Uma rua, os afetos

Faço 40 anos em setembro e meu sonho de princesa era uma viagem a Liverpool para comemorar. A cidade inglesa é para os beatlemaníacos o que Meca é para os muçulmanos: sonhamos em fazer ao menos uma peregrinação à terra santa. Se o ímpeto de visitar a cidade arrefece por fatores externos (o corona, ou pior, o câmbio) há uma música que ressuscita viagramente o desejo: Penny Lane.

Penny Lane é uma rua de Liverpool e a canção, uma crônica de Paul e John sobre sua rotina suburbana em calçadas nas quais sempre passavam. Falam da barbearia, do banqueiro (agiota?) na esquina, das pessoas cumprimentando-se, crianças brincando. No refrão que nos eleva, os compositores dizem que “Penny Lane está em meus ouvidos e em meus olhos”.

Mesmo quem não curte Beatles ou rock n’roll tem sua Penny Lane no coração. Um local (ou mais) cheio de significados, lembranças e sentidos que nos acompanham até o fim dos dias. Casa, bairro, cidade, quintal, sítio, vila, condomínio ou rua que ao serem descritos trazem coisas tão banais quanto universais para quem escuta e assente com a cabeça dizendo “sei bem como é”, mesmo sem nunca ter pisado no lugar relatado.

Para que estabelecimentos de concreto, asfalto e desconhecidos (ou conhecidos de longe, ainda que estando perto) não saiam de olhos e ouvidos, muito se houve naquele perímetro. Primeiros ou últimos amores, amizades inquestionáveis até segunda ordem da maturidade, pedacinhos de emoções em caráter de realidade e promessa. Se a memória é seletiva, sua alma não é de gelo.

O ritmo da canção é o de alguém narrando com alegria o que viveu. A harmonia musical, em certo momento, exige que se aumente o volume da voz durante os refrões. Os então garotos de Liverpool deixam claro, em alto e bom (muito bom!) som, que ninguém vai tirar Penny Lane deles, jamais.

E nos empolgamos com essa alegria, revisitando nossa história como quem aparece de repente num asilo longínquo e escondido. E sorrimos como quaisquer dos seus habitantes o fariam, até esquecermos se acabamos de chegar ou se já estávamos ali e recebemos uma visita inesperada.

domingo, 12 de abril de 2020

Passagem

Há alegria no pesadelo. Muita. Emerge concentrada ao percebermos que ele acabou. A taquicardia, a ansiedade, o medo de se ver encarcerado naquele simulacro sinistro ainda ressoam no ambiente do quarto. Mas o processo de alívio já se inicia. Era apenas um sonho ruim.

Durante o pesadelo vivemos uma realidade esquisita. Sentimos tudo aquilo sem a certeza de onde veio e pra onde vai. Um real pastoso cuja tônica é o mal-estar. A sensação de ser parte, sabe-se lá até quando, do elenco de Caverna do Dragão. E sem avistar Mestre dos Magos.

Há quem lembre em detalhes de seus pesadelos. Há quem dê graças por esquecerem a trama ao acordar. Porém tanto aqueles como estes mantêm comunhão quanto à recente experiência ruim no trem do sono, que parecia nunca chegar à estação final.

Ninguém deseja ter pesadelos, ou se planeja para tal. Flagramo-nos  inconscientemente neles, e mesmo nesse estado é possível maldizer a hora em que pegamos no sono. Somente o final da incômoda caça ao tesouro ativará o controle remoto interno das pálpebras, enfim.

A única certeza que se tem durante um pesadelo é que ele tem que acabar. Seja o que for que tenha causado aquilo, bem como a dúvida do que virá depois, nada tira de nós a vontade máxima de passar logo por tudo e despertar.

Que acabe. Logo. A manhã, essa esfuziante redentora, não se cansa de nos esperar.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Das formas de ler

Cada um com seu cada qual, com seus hábitos e os modos de exercê-los. Como se lê?

Gosto de ler em trânsito, porém restrito à estabilidade dos trilhos. Tentar ler dentro de um carro ou do ônibus me leva à dor de cabeça e ao receio de um descolamento de retina. E assim, a futuras dores de cabeça. (Bem maiores do que a que estou tendo agora: afinal, é descolamento ou deslocamento de retina? Já chequei a resposta, não gravei e fiquei eternamente preso nesse looping morfológico.)

As leituras no metrô ganharam concorrência brutal dos podcasts. Ambos disputam  sinestesicamente se mais vale ouvir do que correr os olhos da esquerda para a direita. A leitura é dos extremos: fala grosso como um conservador que exige o respeito às tradições, e também feito criança que reitera seu lugar gritando “cheguei primeiro!”. O adolescente podcast dá de ombros e continua blasé, sem querer tentar entender as demais gerações.

A rede na varanda também viria a ser habitat de leituras específicas, como a gigantosa revista Piauí. Até então pensava em usar a herança indígena apenas para exercer o sagrado direito universal da soneca pós-almoço. Mas deitar e deixar cotovelos e olhos fazerem o único esforço necessário revelou-se a melhor forma de ler, ao menos pra mim.

Assim redescobri um dos grandes prazeres da vida: cair no sono com óculos ao rosto e livro (ou revista, ou e-book) repousando sobre o tórax. Traduz a despreocupação que almejamos ter em vida. Antes da obrigação de deixar as coisas nos seus devidos lugares (no móvel do quarto ou em alguma gaveta), o prazer de se deixar levar pelo prazer. No caso, pela leitura rumo ao sono. Livro aberto no peito é atestado de carpe diem.

É curioso, pois inicio o processo cheio de vontade de ler e muito me satisfaço com o fato de não ter avançado tanto e estar sonhando. Acordar sem miopia recebendo um pequeno abraço em papel de boa gramatura é recompensador. A leitura, dessa vez, não fica enciumada. Sabe que o sono é pura biologia que recebeu uma senhora ajuda. Percebe que o sagrado direito universal é seu aliado de longo prazo: mente descansada, oficina literária.

Em tempos de quarentena, também reaprendo que ler é a forma mais eficaz de se ir longe sem sair do lugar. E descanso.