segunda-feira, 6 de abril de 2020

Das formas de ler

Cada um com seu cada qual, com seus hábitos e os modos de exercê-los. Como se lê?

Gosto de ler em trânsito, porém restrito à estabilidade dos trilhos. Tentar ler dentro de um carro ou do ônibus me leva à dor de cabeça e ao receio de um descolamento de retina. E assim, a futuras dores de cabeça. (Bem maiores do que a que estou tendo agora: afinal, é descolamento ou deslocamento de retina? Já chequei a resposta, não gravei e fiquei eternamente preso nesse looping morfológico.)

As leituras no metrô ganharam concorrência brutal dos podcasts. Ambos disputam  sinestesicamente se mais vale ouvir do que correr os olhos da esquerda para a direita. A leitura é dos extremos: fala grosso como um conservador que exige o respeito às tradições, e também feito criança que reitera seu lugar gritando “cheguei primeiro!”. O adolescente podcast dá de ombros e continua blasé, sem querer tentar entender as demais gerações.

A rede na varanda também viria a ser habitat de leituras específicas, como a gigantosa revista Piauí. Até então pensava em usar a herança indígena apenas para exercer o sagrado direito universal da soneca pós-almoço. Mas deitar e deixar cotovelos e olhos fazerem o único esforço necessário revelou-se a melhor forma de ler, ao menos pra mim.

Assim redescobri um dos grandes prazeres da vida: cair no sono com óculos ao rosto e livro (ou revista, ou e-book) repousando sobre o tórax. Traduz a despreocupação que almejamos ter em vida. Antes da obrigação de deixar as coisas nos seus devidos lugares (no móvel do quarto ou em alguma gaveta), o prazer de se deixar levar pelo prazer. No caso, pela leitura rumo ao sono. Livro aberto no peito é atestado de carpe diem.

É curioso, pois inicio o processo cheio de vontade de ler e muito me satisfaço com o fato de não ter avançado tanto e estar sonhando. Acordar sem miopia recebendo um pequeno abraço em papel de boa gramatura é recompensador. A leitura, dessa vez, não fica enciumada. Sabe que o sono é pura biologia que recebeu uma senhora ajuda. Percebe que o sagrado direito universal é seu aliado de longo prazo: mente descansada, oficina literária.

Em tempos de quarentena, também reaprendo que ler é a forma mais eficaz de se ir longe sem sair do lugar. E descanso.

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