domingo, 7 de setembro de 2003

O cinema de Guel é a maior diversão

Como falei no último post, aqui vai uma crítica mais apurada do novo filme de Guel Arraes, Lisbela e o prisioneiro. Quem gostou do "Auto da Compadecida" e de "Caramuru" não vai se decepcionar com este. Direção, roteiro, produção, interpretações, figurinos, trilha - tá tudo bom demais. Com certeza verei pela quarta vez (no cinema).

Osman Lins é um autor pernambucano desconhecido, de onde Guel Arraes tirou a história do filme para primeiro transformá-la em peça. Foi um laboratório de sucesso para saberem o que fazer na tela grande. Alguns atores que estavam na peça estão no filme, ainda que em papéis trocados.

De fato, as interpretações de cada um já valem o ingresso, com sobras. Selton Mello vai se transformando no maior ator de sua geração, tamanha é a sua versatilidade. Além dos citados filmes de Guel, Selton também protagonizou com maestria o pesado "Lavoura Arcaica", além da peça "Zastrozzi". É impressionante sua capacidade de ser completamente diferente em cada papel que atua - coisa que o parceiro do "Auto", Matheus Natchergale, já tinha alcançado.

Marco Nanini, como o vilão, é algo de outro mundo. Sua experiência teatral e televisiva está dando conta da carreira cinematográfica, permitindo-lhe o bom senso de nunca parecer exagerado nos personagens que encarna. Sabe dosar o humor, a seriedade, o drama e o que vier na medida ideal. Suas caras, bocas e entonações chegam ao limite da perfeição nesse filme.

Débora Falabella surpreende como Lisbela, embora cresça somente durante o desenrolar do filme. O mesmo se diz de Bruno Garcia como o noivo carioca (que no teatro fez o papel do prisioneiro, que aqui é de Selton Mello). Tanto ele como Virgínia Cavendish - mulher do vilão - são dois atores não muito conhecidos do grande público que possuem talento fenomenal, acredite. Tadeu Mello é o cabo Citonho, num personagem para o qual parece ter nascido. Assim como André Marques, que conseguiu a proeza de sair da Escolinha do Professor Raimundo ("Meu querido!!!") e do papel de D.João VI para ser muito requisitado como ator, e com justiça.

O roteiro e seus argumentos são sensacionais. Destaque para o dinâmico jogo de palavras entre os personagens, já característico dos filmes de Guel. Em meio à comédia sem descanso, também há cenas de drama que provocam sinceras lágrimas na platéia. E principalmente para o enredo, que trata os clichês de Hollywood exatamente como são: clichês que não se comparam a um filme do nível de Lisbela e o prisioneiro. Fica aí o recado para que prestemos mais atenção à qualidade da produção nacional, em vez de apenas encher os cofres dos ianques sem imaginação.

A trilha sonora também é notável. Pela sua diversidade e bom gosto: depois de "Sozinho", Caetano Veloso transforma outra música considerada brega ("Você não me ensinou a te esquecer", de Fernando Mendes) em momento mágico da MPB; Elza Soares manda bem no tema do vilão (e olha que eu a odeio!), Los Hermanos mostram que sabem de forró; e uma inusitada parceria produz inimaginável entrosamento: Zé Ramalho e Sepultura. Fora a qualidade musical, cada letra e melodia encaixa-se nas cenas com perfeição - méritos para a produção.

Claudio Assis, diretor de "Amarelo Manga", trouxe ácida opinião sobre o tal "cinema social" do país: "O Brasil está fazendo um cinema com culpa (...) são burgueses filhos de sei lá quem, que têm peso na consciência por herdar riqueza e que querem se limpar fazendo um cinema com culpa. Daí dizem que pobre é bonzinho..." Certo ou errado, aproveito o depoimento de Claudio para inocentar Guel Arraes. Seu cinema não é com culpa, é com orgulho do país, com a pretensão de conscientizar no sentido da auto-estima cultural. Sabemos fazer bom cinema, e nossa terra e nossa miscigenação geral são matéria-prima suficiente para ótimos roteiros. Além disso, faço coro com o personagem de Selton Mello: "cinema nacional é bom porque o beijo já vem traduzido...".

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