quinta-feira, 30 de setembro de 2004

Palavra!

"Há coisas que a palavra não alcança". A frase, dita por um professor da faculdade, não trazia uma idéia inédita para mim. Ainda assim, me impactou. Novamente. Ele falava de uma experiência física que viveu (foi lenhador por um dia!) e da dificuldade em traduzi-la para a linguagem, seja verbal ou escrita. Consegui captar o sentido daquela afirmação, e me incomodei.

Alguns amigos mais próximos conhecem minha estreita e intensa relação com as letras. Meus olhos as consomem democraticamente, minha curiosidade voraz suplanta qualquer preconceito. Leio tudo ou, ao menos, começo a ler.

Já minha relação com a escrita se dá de maneira mais sensorial, quase fisiológica. Pode parecer chavão, mas é verdade que nunca planejei escrever. Em certa hora da adolescência, o "hormônio da expressão" emergiu e demandou o compartilhar de meus processos interiores. O que fervilhava em minha mente, coração, enfim, em meu corpo, precisava se tornar público. Está aqui ratificado que o que falei não é chavão. Conheça-me: eu, em minha personalidade reservada e meio tímida, nunca pensaria em publicar algo. Mas foi o preço a ser pago, e até hoje recebo troco...

Tudo isso foi para se ter uma idéia de como a afirmação de meu professor me desconcertou. Se há coisas que a palavra não alcança, por um momento me senti descartável, sem função no mundo. E condenado à "morte". Se é pela escrita que consigo traduzir o que minha vocação pessoal exige, que fim me espera?

Bom, a aula era de Linguagens Não-Verbais, então não era tão catastrófico assim. De qualquer forma, chegaremos a um ponto em que a palavra não alcança? Sim. Em relação ao amor.

Lembro de uma cena do filme "Melhor é impossível" em que o personagem de Jack Nicholson (um escritor) está num fluxo de criação defronte ao computador, com a inspiração sendo cristalizada na tela do Word e um êxtase percorrendo toda a sua magnífica interpretação (não foi à toa que ganhou o Oscar). Ele vai concluir o parágrafo iluminado com a definição do amor: "O amor é..." TOC! TOC! TOC! Ele tenta ignorar as batidas na porta e prosseguir: "O amor é..." TOC! TOC! TOC! TOC! TOC! TOC! Exasperado, ele se levanta e já abre a porta "espinafrando" o personagem que cometera sacrilégio contra o ser escritor, berrando que aquele é o trabalho dele, que ele não pode ser interrompido assim etc e tal. Depois da briga, ele tenta retomar o êxtase, mas é tarde. Coito interrompido, iluminação apagada. Foi-se a definição do amor.

É isso. É impossível definir o amor. Adoramos as letras de Chico Buarque, Vinícius de Moraes e tantos outros poetas, mas o que admiramos mesmo é a maneira genial com que eles falam do amor e do que ele proporciona. Nenhum deles se atreve a dizer "o amor é...". Nem as figurinhas do "Amar é..." se atreviam: davam exemplos práticos da (suposta) expressão do amor. Mas nada que configurasse a definição do amor.

O amor é adjetivado, vivido, comparado em diversas fases dos relacionamentos, mas nunca definido. "Amor é isso, e ponto". Ponto, uma vírgula! Vá você ter a pretensão de definir o amor, pensando engavetá-lo para que lhe seja mais previsível e não saia da sua caixa de Pandora. O amor é. Aí sim, ponto. Ponto inicial. O reconhecimento dessa incapacidade de se definir o amor é o renovo supremo. São menos dores de cabeça, menos ilusões, menos frustrações, mais realidade e gozo.

Há coisas que a palavra não alcança. Lá está o amor, soberano, rindo de maneira nobre dos plebeus que insistem no empacotamento cognitivo/sensorial de sua essência. A própria Escritura diz que "Deus é amor", e não o contrário. O fato é que estamos com o foco errado. Em vez de nos maravilharmos com os imensos limites humanos, singulares toda vida, queremos surrupiar os mistérios eternos. Assim é a dança do amor, na qual pisamos no pé do parceiro freqüentemente. Com masoquismo.

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