quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Nas passadas



Eu gosto de correr.

Então me vi correndo numa pista, dessas que circundam o gramado central dos estádios olímpicos. Não era corrida rasa, eu parecia correr numa velocidade constante e prudente para preservar meu fôlego até o fim. Na verdade, parecia que eu estava num de meus treinos diários, para manter meu condicionamento físico. Não havia mais ninguém no estádio: nem nas arquibancadas, nem na pista. Era apenas eu e um dia ensolarado, correndo e suando, diligentemente.

De repente comecei a reparar num vulto à minha frente, na pista. Minha curiosidade me fez acelerar, deixando um pouco de lado a disciplina do treino. A imagem ficava mais nítida, e eu já podia perceber que era uma pessoa branca, de camiseta e meias idem, e calção preto, correndo. Achei estranho, pois não tinha visto ninguém entrar no estádio ou na pista. Sozinho por ali, seria difícil alguém passar desapercebido por mim.

A silhueta me é familiar, mas de costas você não tem certeza absoluta se conhece ou não qualquer pessoa. Não tinha outra escolha senão correr mais, e eu já percebia que o ritmo daquele desconhecido era mais forte que o meu, e também mais firme e constante. Fui chegando, chegando e de curioso passei a intrigado: eu conheço esse cara. Mas de onde? Por coincidência, sua roupa era exatamente igual à minha. Eu suava bem mais do que quando o avistei, e agora meu objetivo era emparelhar com ele. Objetivo é eufemismo, tinha virado obssessão. Quem é esse cara?

Então eu consegui, fiquei bem ao lado dele, fazendo um esforço extra, concentrado no momento em que ia matar minha curiosidade. Saber quem era aquele estranho, aquele intruso do meu treino, aquele "copião" dos meus trajes, aquele que corria mais rápido (e melhor) do que eu.

Tive que controlar o susto. O corredor era eu. Talvez fosse um clone, um sósia, uma brincadeira de mau gosto. Mas tinha certeza que não. Era eu, de alguma maneira em outra dimensão da vida, em outro momento. Correndo mais e melhor do que eu. Ele (eu?) não se abalava, permanecia na sua velocidade, sequer se virou para me olhar também. Depois de uma súbita parada devido ao susto, fiquei em desvantagem, eu (ele?) já estava de novo lá na frente. Percebi que eu não conseguia mais acompanhá-lo. Por mais forças que empenhasse, ficava entre nós aquela distância na pista. Eu corria mais do que eu mesmo.

A dificuldade de processar as mudanças que acontecem em nossa vida, sejam elas boas ou más, quando ocorridas em curto espaço de tempo. Os sintomas daquela "avalanche" surgindo e a gente sem saber de onde vêm, um descontrole de emoções não-identificáveis na sua totalidade. O medo do novo, do desconhecido. Por incrível que pareça, o medo de ser feliz e "cair dentro" do propósito de felicidade há tempos anunciado e para o qual nos preparávamos. A própria preparação surpreendida pelos fatos que andaram mais rápido que qualquer planejamento sóbrio.

Resta-me voltar à pista e me dar conta de que tenho corrido mais do que eu mesmo. Volto a meu ritmo, sabendo da necessidade do treino e da disciplina. Porém me lembro de algo muito importante. Algo mais importante do que todo o plano de treinamento, o melhor tênis ou as roupas mais leves para melhorar meu desempenho. Mais especial até do que passar pela inesquecível experiência de me ver correndo contra mim numa pista - isso seria um desespero se não tivesse me lembrado do que lembrei então.

Eu lembrei que gosto de correr.

Sem essa constatação, nunca me verei entrelaçando os braços comigo mesmo numa pista, correndo no mesmo ritmo, até me ultrapassar, ganhar confiança e terreno. E olhar pra trás, percebendo que desapareci, que estava sozinho novamente. Mas que não seria pela última vez.

Nenhum comentário: