quinta-feira, 24 de maio de 2007

Uma cena

Os médicos também são capitalistas. De que adianta "sair voado" do trabalho, mais cedo que o normal, se ao chegar ao consultório na hora marcada há cinco pessoas na minha frente, devido ao atraso de consultas anteriores? Acontece que sempre que vou lá é assim, o que me permite a suspeita: quanto mais consultas, melhor. Qualquer atraso, o paciente espera! Absurdo, como muitas das buscas pelo lucro máximo.

Pois eu é que não fico lá esperando. Daqui a uma hora eu volto, e me mando pra Cobal do Humaitá em busca de um crepe e um mate limão.

E vem a cena.

60 e mais anos, camisa pra dentro da calça, barriguinha "aerodinâmica" dos chopinhos em vida. De cabeça erguida, olhos fechados (só se abriram para fixar algum ponto específico, lá no alto), braços abertos como se recebesse uma bênção divina. Ao redor, o estacionamento da Cobal, as pessoas passando e ele, concentrado.

Não demorou e veio o sinal-da-cruz, três vezes, todos terminando com 3 beijos nos dedos que vão à mão, após o Amém.

Então percebi: o ponto específico, lá no alto, era o Cristo Redentor.

Porém, mais do que entender, vi a fé. Se ela pudesse se materializar, seria naquela cena. Cadê o templo? Não havia. E o constrangimento por tal postura em público? Também não existia. Afinal, por que se envergonhar de sua fé?

Ele também não estava ali para dar espetáculo. Terminou seu momento de fé (após uma última e igualmente feliz contemplação do Cristo, ainda com os braços abertos, "em bênção"), e seguiu Cobal adentro.

Do jeito que foi a cena, não arrisco dizer que logo após ele "voltou à vida", como se antes estivesse em transe. Não, ele seguiu o curso normal de seu cotidiano, do qual a fé parece fazer parte significativa. A ponto de ser tão natural um momento daquele em público, como andar devagar ou usar camisa pra dentro da calça.

Vi a fé, pois ela não precisa de um aparato específico para ser exercida, simplesmente é espontânea e sincera. Como naquela cena. Acontece.

Vi a fé, graças ao capitalismo.

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