Que bom que esse sangue jorra
Demorou, mas tive a oportunidade de assistir ao documentário 3 irmãos de sangue, que conta a vida de ninguém menos que Henfil, Betinho e Chico Mário. Uma trindade hemofílica onde cada pessoa dela executou, com unção, a missão que lhe cabia. O humor, a sociologia prática e a música com alma nunca foram tão refinados e afinados com nosso tempo. Temos uma geração inteira marcada por Henfil, Betinho e Chico Mário.
Difícil dividir comentários sobre o filme e sobre a vida dos três. A gente não sabe se gostou e saiu emocionado pelo conteúdo dramático ou pela maneira com que tudo foi narrado em tela. A diretora Ângela Patrícia Reiniger mostrou que tinha na veia a matéria-prima essencial para se fazer um filme sobre os três: sensibilidade. Porque é isso que transborda a cada cena e, principalmente, a cada depoimento de arquivo de cada um deles.
Eu, particularmente, nem sabia quem era Chico Mário, sequer que Henfil e Betinho tinham mais um irmão famoso. Pois o filme mostra que os três estavam no mesmo patamar da vida, daqueles que nasceram pra fazer diferença - muito antes dessa expressão virar clichê. Seu violão fala alto no volume inaudível do coração de quem assiste o documentário. A música sobre Ouro Preto e o show em sua homenagem, quando a AIDS avançava (os três se tornaram soropositivos após transfusão de sangue, sempre necessária) são de não deixar a gente dormir, no bom sentido.
Henfil, um barbudo bonito e carismático pra caramba, e seus traços mínimos no papel. É uma coisa impressionante. Vê-lo falar sobre cada personagem, sobre seu desejo intrínseco de fazer cinema, sobre o Brasil - todos eram muito, mas muito brasileiros - é bom demais. A maneira original de entrevistar os convidados no seu quadro na TV Mulher é inesquecível.
E Betinho, que levou a teoria sociológica para o campo prático e urgente do brasileiro? Para aqueles que tinham fome e para os indiferentes: ambos sentiram o revirar do estômago. E isso desde quando o irmão do Henfil voltou da anistia... Esse parece nunca ter sossegado na tarefa que assumiu pra si de não ser mais um lamentador.
A hemofilia e a AIDS permeiam o documentário, como deve ter sido na vida dos três. A princípio, explícita na hora da descoberta e de saber como lidar com elas. Depois, como companheiras permanentes com as quais os irmãos precisaram conjugar suas circunstâncias e perspectivas. Ao final, de novo explícita, anunciando o fim e denunciando negligências no trato com os hemofílicos de todo o país, e não só os famosos.
Além da cara vermelha e dos soluços de tanto chorar, saimos do cinema com a sensação de que a luta contra a desigualdade e os desmandos injustos desse mundo pode ser encarada com suavidade. Em nenhum momento percebemos nos discursos de Henfil, Chico Mário e Betinho aquele ranço chato de quem acha que a vida nada vale porque não há condições ideais para todos. Isso é verdade, mas eles nos mostram que é possível encarar essa luta com o vigor suave de um traço, de um acorde ou com o dom da conciliação.
Uma das últimas falas de Betinho parece resumir poeticamente tudo o que eles viveram: "Nessa luta, daqui a um tempo, não importa quem vai estar vivo ou quem vai estar morto. O que importa é que a música existe".
4 comentários:
lindo texto, como lindo foi o filme. para mim, outra lição que fica é a cumplicidade entre os "manos".
e digo mais, meu caro amigo, se eu tivesse um irmão, queria que ele fosse mais ou menos como você (talvez excetuando o flamengo). um grande abraço e um feliz natal para você e para suas famílias - a antiga e a atual.
Mestge, obrigado pelas palavras e pela cumplicidade diária. Saudações rubro-negras... rsrsrs
Lessa, old fellow, congratulations...nice post, pretty sensitive. Henfil was really a great cartoonist and a great Brazilian, something already rare today ...
Dj Glaj (djglajnight.blogspot.com)
Dj Glaj, quase não reconheci pelo pseudônimo... Tive q ir no blog pra descobrir. Abs!
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