segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O homem é o mito. E o mito é um homem, sempre

Recomendo a leitura de Roberto Carlos em detalhes, biografia do rei muito fundamentada e bem escrita por Paulo César de Araújo. Talvez não seja fácil achar, já que o cantor entrou com um processo contra o autor, e o covarde acordo da editora Planeta com Roberto resultou no recolhimento dos 11 mil exemplares à venda, além de impedir sua comercialização. Mas procure em sebos ou alguém que tenha adquirido quando ainda não era proibido fum... comprar.

O livro já mereceria atenção por ser a primeira biografia de Roberto Carlos, fruto de uma pesquisa de 15 anos do historiador, jornalista e mestre em memória social Paulo César. Mas o processo judicial e suas desproporções kafkianas despertaram o interesse até de não-fãs (como eu) pra saber que conteúdo explosivo era aquele.

No evento Jornalismo Literário, do Centro Cultural Banco do Brasil, Paulo César contou o que houve na história toda - e que ele vai contar no livro O réu e o rei, a ser lançado: Roberto e seus advogados (ou será o contrário?) acusaram o autor de invasão de privacidade e pediram altas indenizações por danos morais e multas astronômicas por dia em que o livro ainda estivesse sendo vendido. Até a prisão do autor foi solicitada na acusação.

A editora Planeta prometeu total apoio a Paulo César, mas na hora teve postura de cordeirinho diante do poderoso Roberto Carlos. Segundo relato do autor, o juiz do acordo, Tércio Pires, foi tirar fotos com o cantor após a audiência. Músico amador, Tércio entregou seu CD para o rei apreciar as belas canções de Té Lopes, nome artístico do magistrado.

Paulo César ainda falou da sua interpretação para a reação de Roberto: assim como boa parte de seu público, ele possui cultura televisiva, sem o hábito da leitura, e um livro sobre sua vida teria lhe dado um susto. Além de discordar de alguns relatos e sempre anunciar que faria sua própria biografia. Curioso é que Jacqueline Kennedy possui 26 biografias sobre sua vida, feitas por autores diferentes...

E lá fui eu pedir emprestado o livro ao sogrão bibliófilo para conferir.

O mito está lá

Aqui é necessária uma contextualização: nasci em 1980, e quando começava a ficar grandinho conheci Roberto Carlos pelos especiais de final de ano da Globo. Fiquei mais grandinho e vi que era sempre o mesmo especial, e que as entrevistas de Roberto eram sempre as mesmas, e suas músicas novas, um absurdo. Pontos para o politicamente correto e a memória viúva, mas o rei da música brasileira fazendo canções apenas sobre mulheres de óculos e gordinhas, e para a falecida esposa? Não conseguia acreditar.

Esse Roberto Carlos bobalhão da Rede Globo era o único que eu conhecia de perto. Até ler o livro de Paulo César de Araújo.

Diante da pesquisa acurada do autor, tive que rever todos os meus preconceitos (talvez até justificáveis) para descobrir a importância que Roberto Carlos tem para o cenário musical brasileiro. Ali percebi a originalidade de Roberto, o impacto que seu rock causou, sendo embaixador dos Beatles sem deixar de ser autêntico e ainda causando inveja e recalque inimagináveis em baluartes da MPB (aliás, a sigla surgiu pra diferenciar-se do que a Jovem Guarda liderada por Roberto produzia).

Também graças ao livro revisitei canções românticas e simples, mas belas, que ele e Erasmo Carlos produziram, como Se você pensa, Sentado à beira do caminho, Detalhes, As curvas da estrada de Santos... Eu já tinha ouvido essas músicas nos especiais da Globo, mas saber como elas surgiram nos dá a dimensão do mito Roberto Carlos.

E aí está, na minha opinião, o ponto central da discórdia entre o rei e o réu. Paulo César de Araújo faz uma pesquisa tão séria e tão profissional que não esconde o lado humano de Roberto Carlos. Fala de sua única briga com Erasmo (negada ao vivo no Faustão), de suas manias, de suas espertezas para conseguir um lugar ao sol na vida artística. E em nenhum momento o talento e a estrela de Roberto Carlos são menosprezados, muito pelo contrário.

Porém Roberto Carlos não admite essa humanização do mito. Seus especiais na TV, suas aparições em outros programas, suas entrevistas, enfim, o trabalho de sua imagem é voltado para que o rei seja uma unanimidade bondosa e cativante - quase um santo. E nada pode pôr em risco esse processo. O que normalmente as biografias sérias fazem.

O mito é um homem, e nem por isso deixa de ser mito - vá você encontrar uma razão absoluta no imaginário popular. Paulo César também pontua que Roberto é um artista biográfico, divide sua vida com os fãs ao entoar passagens pessoais (com alegrias e dores) através de suas letras. Nada mais irônico do que impedir que uma biografia sua chegue ao público.

O santo, com seus devotos imediatos e interesseiros (assessores e advogados) cultiva a ilusão de que vai controlar o que pensam dele. Com certeza, após a morte, seus herdeiros terão a mesma militância. Mas vai adiantar, em tempos de internet e democracia?

O livro de Paulo César reforça o mito, contudo com mais fundamentos do que os apresentados pelo próprio Roberto ano após ano. A decisão de praticar tamanha violência judicial joga contra sua intenção canonizante. Vocês precisavam ver a cara da minha avó ao ouvir a história do processo, e em seguida dizer "eu não esperava isso de Roberto Carlos...".

Eu também não esperava que o livro fosse tão bom - pra mim e pra Roberto Carlos. Só que ele não quis rever seus conceitos...

2 comentários:

Clarissa disse...

Amigo-lhe,
fiquei sem palavras lendo o texto.

Fiquei até com vontade de ler a biografia do dito cujo.

Marcos André Lessa disse...

Hahahaha

Vale a pena!