segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Geografia


Nasci no Engenho Novo, cresci em São Cristóvão. Trabalhei na Cidade Nova, no Centro, em Botafogo e na Vila da Penha. Estudei em Niterói. Casei e fui morar no Flamengo, depois Tijuca. Visito meus pais no Recreio e em Irajá. Sem contar a rede de conhecidos e amigos que transitavam por outros bairros. Acredito que tudo isso contribuiu para formar minha identidade, e para me dar uma visão da cidade e da população que nela habita de maneira mais abrangente do que a que eu estaria acostumado.


Estudar no Colégio Pedro II, na sua maior unidade escolar (São Cristóvão), desde o primário até o ensino médio já foi um aprendizado. Todos usavam uniforme. Nós só conseguíamos distinguir a classe social do colega de classe na saída, quando víamos o carro com que os pais vinham buscá-lo. Ou quando fazíamos trabalho de grupo na casa de alguém, e conhecíamos a realidade dele.

Numa época pré-celular, só tínhamos pistas da condição social dos alunos ao ver a marca (e o estado) de sua mochila e de seu material escolar. Claro que no convívio diário descobríamos a diferença de morar no Jacarezinho, no Jacaré e em Jacarepaguá. Desvendávamos a cidade e seu povo a partir de seus filhos.

Na hora do recreio eu via as centenas de alunos merendando, brincando, namorando, jogando bola, para 20 minutos depois voltarem às aulas. Todos recebendo o retorno de seus impostos como deveriam: frequentando uma escola pública de qualidade. Todas as classes sociais sendo atendidas da mesma maneira, sem privilégios - apenas o do bom ensino para todos.

(Por que não podia ser assim pra tudo? Todos tendo acesso à saúde, cultura e habitação da mesma maneira que os alunos do Colégio Pedro II tinham à educação? Foi nessa época que tais perguntas começaram a "minhocar" na minha cabeça.)

Congreguei numa igreja na Praça Tiradentes. Em vez da educação, a fé reunia a cidade. Almoçava na casa de amigos que moravam em favelas de Santa Teresa, dormia na casa de outros que moravam no Leblon. Descobri que Duque de Caxias existia mas não era na cidade do Rio. Quem morava na Ilha do Governador me dava carona, pois era só pegar a Linha Vermelha perto da minha casa.

Trabalhar no atendimento ao público de agências do Banco do Brasil foi outra experiência antropológica. Comecei na Torre do Shopping Rio Sul, abrindo contas para estudantes da Zona Sul e vendo grandes figurões (com grandes contas bancárias) circulando ali. Meu ônibus até lá cruzava a Avenida Presidente Vargas e o Aterro do Flamengo.

Em seguida, fui para a Vila da Penha. Pegava o ônibus na Avenida Brasil, na altura do Caju, e seguia até a porta da agência. Atendi pensionistas do INSS, gente que sacava todo o seu salário mínimo no dia do pagamento. Conheci outro povo da cidade, que morava em Vicente de Carvalho, Vista Alegre, Madureira, Brás de Pina, Penha.

Tive a ideia desse texto ao pegar o metrô em Irajá, olhando o morro do Juramento iluminado à noite, sabendo que ia saltar no meio do caminho de uma linha que chega a Ipanema. Me dei conta de que tudo isso é Rio de Janeiro, e que tive o privilégio de transitar por essa cidade e conhecê-la. Nesse processo meus preconceitos foram confrontados, e os limites de minha então visão de mundo foram expandidos.

Sendo assim, é impossível olhar para essa cidade de maneira sectária, como se apenas um pedaço dela merecesse dignidade. Também não dá pra encarar o Rio apenas como um balcão de negócios, ou pensar que suas representações culturais obedecem a uma hierarquia intelectual de importância.

Somos tudo isso, e devemos aprender que sermos tudo isso nos ajuda a sentir melhor esta cidade. O verbo é esse, sentir, pois quando ela for celebrada, ficaremos felizes; quando for sangrada, vai doer; quando tentarem prostituí-la em nome de interesses particulares, a humilhação vai nos incomodar. E assim poderemos reagir. Quanto à geografia e, principalmente, às pessoas.





5 comentários:

Priscila disse...

É estranho pensar que estamos vivendo uma nova reforma de Pereira Passos.. Que patrimônio tombado pode ser destombado pelo prefeito como prédios da Rua da Carioca. Que um milhão de reais fosse lugar comum pra falar em preço de imóveis...
Sinto tudo tão estranho...

Sibele disse...

Belo texto. (redundante comentário meu, mas nem me importo). Bom te ler!

Marcos André Lessa disse...

Obrigado, Sibele! Vou retomar a frequencia de postagens desse blog.

André Marques disse...

Belo texto, Marcos.
Garanto que nosso Prefeito Somos Todos um Rio não CONHECE nem metade dos lugares que você citou.
Lembrando que "conhecer" vai além de fazer passeatas.

Francisco Costa disse...

Belo texto.
Sou morador de Vaz Lobo, cresci no morro da Congonha e já passei grande parte desses lugares que você citou.
Não nasci aqui, mas da forma como essa cidade me acolheu, é impossível não ficar triste de ver em que mãos ela se encontra.