quinta-feira, 21 de maio de 2015

Facada é a nova onda

O Rio de Janeiro está de novo às voltas com uma "onda de violência". Dessa vez, os crimes a facadas, cometidos por gangues que na maioria dos casos visam assaltar a vítima. Como carioca, infelizmente já vivi outros momentos em que a cidade parecia tomada pelos bandidos. O que também me dá o direito de ser desconfiado. Estamos mesmo vivendo um descalabro na segurança ou sentindo os efeitos colaterais da repercussão midiática dos crimes?


Quero deixar claro de uma vez: não estou negando a realidade. Pessoas foram feridas ou morreram na mão dessas gangues. Famílias estão abaladas ou inconsoláveis, revoltadas pela banalidade com que seus entes queridos foram vítimas de grupos armados. Porém meu objetivo aqui é refletir sobre até que ponto nossa sensação de segurança é resultante de fatos ou de uma determinada cobertura jornalística. E qual a função que tal cobertura desempenha no contexto.

Há pouco tempo uma entrevista do secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, me chamou a atenção. Ainda que indiretamente ele tocou nesse ponto de realidade e percepção que o cidadão do Rio de Janeiro costuma sentir:

"No Rio temos problemas de segurança pública que se agravam quando os grupos criminosos se abastecem com armas vindas do Paraguai. Assim que as recebem, começam a trocar disparos. E além disso temos ‘memória traumática’: quando alguém ouve um tiro ou um estampido, pensa que o mundo acabou e que a segurança é um fracasso absoluto. A história do Rio de Janeiro é muito difícil. Os delinquentes desmoralizam o processo de pacificação com seus disparos: as pessoas ouvem esses disparos e voltam ao ano 2000, quando se metralhava policiais na rua."

Por mais que Beltrame não seja totalmente isento para analisar a situação (afinal, é um dos principais responsáveis pelo combate à criminalidade), há uma dose de razão em seu relato. Mas como se fez essa "memória traumática"? Até que ponto o trauma com a violência - e a pretensão de que ela possa desaparecer por completo de nosso cotidiano - afeta a nossa percepção sobre o que de fato está ocorrendo?

Penso essas coisas porque mesmo nos anos 2000 eu olhava tudo o que acontecia na TV e pensava: "bom, tenho que ir pra faculdade amanhã". Parentes de minha esposa em outros estados ficavam espantados em como conseguíamos viver normalmente em meio a uma "guerra" que a cada verão parecia voltar ainda pior. Percebia várias pessoas que não tinham sofrido qualquer violência no período nem alterado sua rotina tão aterrorizadas quanto as vítimas reais.

Eu achava tudo tão esquisito. Ou pelo menos, desproporcional. Era mesmo aquilo tudo que o noticiário dizia?

Se uma imagem vale mais que mil palavras, o que dizer do homem esfaqueado em plena hora do rush numa das avenidas mais movimentadas da cidade? A reportagem foi ao ar no Jornal Nacional, então todo o Brasil ficou hipnotizado por aquele horror. E hoje o que me chama a atenção é a quantidade de crimes a facadas que ocorreram desde então. De repente as seguintes dúvidas começaram a pular na minha cabeça:

- Será que outras gangues viram a reportagem e, percebendo a facilidade de cometer tal crime e sair andando tranquilamente, se sentiram "encorajados"?
- Será que tais crimes já ocorriam antes com essa frequência mas só apos o Jornal Nacional começaram a ser mais noticiados?
- Será que tais crimes continuam com a mesma frequência de sempre mas com a repercussão midiática contínua ficamos com uma sensação desproporcional em relação à estatística?

Lembrei então das aulas da Sylvia Moretzsohn na faculdade, em que a questão das "ondas de violência" e o papel da imprensa eram abordados. No seu artigo "Imprensa e criminologia: O papel do jornalismo nas políticas de exclusão social", ela cita um fenômeno do tipo ocorrido nos EUA:

" Essas considerações são importantes para a percepção do papel da imprensa num dos casos que mais nos interessam aqui: a formação das ``ondas de crime''. Mark Fishman, em seu estudo sobre uma onda de crime contra idosos em Nova Iorque, constatou de saída os procedimentos de ``auto-alimentação'' entre veículos diversos: os telejornais da manhã fornecem idéias para suítes de edições vespertinas e noturnas e influenciam a pauta dos jornais impressos, que, por sua vez, têm na ronda do noticiário radiofônico uma recorrente fonte de informação.

Rejeitando as perspectivas de pesquisadores que tomavam o processo de produção do noticiário apenas como um processo de seleção de notícias - que, portanto, ou refletiriam ou distorceriam a realidade -, Fishman indaga-se até que ponto o processo de produção de notícias não estaria ajudando a criar essas ondas que os próprios jornais reportavam. 


Mas a principal preocupação do autor é com o poder de multiplicação das notícias, que geram mais notícias em cascata e efeitos práticos convenientes para a exploração política: de acordo com a rotina das redações, as notícias são agrupadas em temas, ``conceitos organizadores'', de modo que, no caso estudado, as matérias sobre idosos talvez não tivessem merecido atenção se editadas isoladamente, mas ganharam expressão quando noticiadas em conjunto. Logo se seguiria um efeito importante: o prefeito convoca uma coletiva para ``declarar guerra'' aos crimes contra idosos. Outra consequência: a criação de novos procedimentos de registro pela polícia, ``o que tornou visível, para a imprensa, um grande número de ocorrências bastante comuns''.

Como uma onda de publicidade, [a onda de crimes contra idosos em Nova Iorque] concentrou a atenção do público num novo problema e ao mesmo tempo formulou o problema. A mídia foi ao mesmo tempo o meio pelo qual todo mundo em Nova Iorque ``soube'' da onda de crimes e o meio pelo qual ela foi montada. Os órgãos noticiosos criaram a onda, não no sentido de que inventaram os crimes, mas no sentido de que deram forma e conteúdo determinados a todos os incidentes que reportaram. Do trabalho jornalístico surgiu um fenômeno transcendendo os acontecimentos particulares que eram suas partes constitutivas. Uma onda de crimes é uma ``coisa'' na consciência pública que organiza a percepção do povo em relação a um aspecto de sua comunidade. Foi essa ``coisa'' que a mídia criou.

E criou também a sensação de medo, o que justifica medidas como pôr mais policiais nas ruas, criar novas leis, sonhar com a mudança para cidades do interior, etc. No entanto, diz ele, ``a orientação política de monitorar de perto e reportar os crimes contra idosos havia sido projetada para um período de três meses apenas. Quando o monitoramento especial terminou, a cobertura morreu, e a onda de crimes acabou''. 


Alguma semelhança?

Considerando que a redução da maioridade penal está em vias de ser votada e que boa parte desses crimes foi cometido por “aparentemente menores”, como muitas reportagens costumam destacar, é de se considerar a hipótese.

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