"Minha casa é meu refúgio."
"Minha casa é meu refúgio. A gente sai cedinho, dá um beijo nos filhos, pega trem lotado, sobe no ônibus até chegar em cima da hora no trabalho. Depois de um dia inteiro, cansado, a gente não vê a hora de chegar em casa, né? É o que fico pensando enquanto pego de novo ônibus e trem lotado, quase duas horas que leva, até descer no ponto e andar só um pouquinho, é pertinho. Abrir a porta, já vem a filharada correndo no seu joelho, todo dia quer um doce da rua, assim também não dá, e a janta? Beijo na esposa, aquele banho que refresca, comida no microondas e já vou me ajeitando que hoje é quarta, dia de jogo na TV. É quase todo dia assim, mas é bom porque eu tô em casa, né? A gente até sai pra ir no boteco de vez em quando, conheço todo mundo da rua, cada lojinha o vendedor chama pelo nome, é legal. Moro aqui há 30 anos, bom demais. Recomendo. É simples, mas muito legal. Não me vejo morando em outro lugar. Até porque hoje tá caro, né? Eu é que não quero sair do meu cantinho. Outro dia só estranhei um negócio. Saí de casa e vi uma pichação no meu muro. Esses moleques são fogo, cada dia escrevem um troço diferente que a gente não entende. SMH 145. Que negócio é esse? Lá vou eu ter que pintar o muro de novo. Cheguei no trabalho, comentei, teve gente que ficou quieta, abriu um olhão pra mim, mas essas não me explicaram nada. Depois um amigo me chamou num canto e veio comentar sobre as Olimpíadas. Ah, eu acho bacana, aqueles atletas todos competindo, ganhando medalha e chorando, deve ser emocionante mesmo. Sempre vejo pela TV. Mas eu falei isso e o meu amigo continuou sério. Ele disse que vai ter bastante obra na cidade por causa da Olimpíada. Isso é bom, né? Só assim pra melhorar as coisas, político enrola pra caramba, às vezes precisa vir um troço desses e obrigar eles a fazer o que o povo precisa. Meu amigo continuou sério enquanto eu comentava tudo isso até que ele me contou que a pichação era uma sigla. Secretaria Municipal de Habitação. Ah, eu sei o que é, é aquele negócio da Prefeitura que é pra dar casa pras pessoas, ou coisa do tipo, não é que eles dão casa, assim, mas é quem administra habitação, o nome já diz. Administra como a gente deve morar na cidade, né? Acho que é isso. Meu amigo concordou, falou que é por aí, mas disse que aquilo era um código, a gente foi marcado. Marcado que nem boi?, eu disse, rindo, meu amigo sorriu sem mostrar os dentes, bem rapidinho, meio sem graça com o que eu falei. Aí ele explicou com bastante calma, pediu até pra gente sentar um pouco, disse que pra um monte de obra da Olimpíada ia ter gente que ia ser removida. Removida como, vai ficar num outro lugar enquanto durar a Olimpíada? Meu amigo continuou, disse que esse pessoal ia ser tirado de onde morava. Pôxa, mas isso é um absurdo, e então eu lembrei que eu disse isso pro pessoal da Prefeitura que apareceu lá em casa um dia. Na verdade, quem falou foi minha mulher, mas ela tinha me ligado dizendo que os caras da Prefeitura tavam lá, e que a gente não aceitava sair dali. Não faz sentido, ué. Um monte de gente vai continuar na sua casa, por que eu vou ter que sair da minha? Moro lá há 30 anos, nunca precisei sair, não vai ser agora. Meu amigo me explicou que isso tá sendo só pra quem mora no caminho das obras, aí eu disse que as obras é que chegaram agora no meu caminho, porque eu não tô lá ontem, tô lá há 30 anos, você não me ouviu antes? Sim, ele disse, mas não tem jeito, e se marcaram a minha casa, é porque aquilo ali é um sinal de que não vai dar mais pra gente ficar lá. Ora essa, e eu vou ficar aonde enquanto durar a obra? Na verdade, não vai dar pra voltar. Como não vai dar pra voltar, e quem vai ficar tomando conta da casa enquanto durar a Olimpíada? Meu amigo ficou quieto e suspirou rapidinho, como que pegando ar pra continuar a conversa, parecia que alguém tinha morrido, gente! Eles vão derrubar a casa. Olha, ouvir aquilo me derrubou. Mas como é que é isso? Vem um negócio de Olimpíada no bairro onde moro há 30 anos, onde todo mundo me conhece e me expulsa? Por quê? Eu vou reclamar! Mas aí lembrei que eu ia ter que reclamar com a Secretaria de Habitação, que pra mim era quem tinha que me ajudar a morar em algum lugar, e não contrário, foi o que pensei na hora. Meu amigo botou a mão no meu ombro, disse que se precisasse de alguma coisa que falasse com ele, eu agradeci e nem sei como trabalhei naquele dia. Chegou a hora de ir, peguei o trem, o ônibus, desci e perto da minha casa vi uns caras estacionando um bicho grande daqueles de mexer com terra, com obra, aquele troço que tem uma mãozona cheia de dentes no final de um bração, tipo um trator. Abri a porta de casa, a filharada veio direto nos joelhos, querem doce todo dia. Minha esposa me beijou, a gente mora ali há 30 anos, minha casa é meu refúgio."
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