domingo, 10 de janeiro de 2010

As cinco camisas do time do coração (*)

Simbiose e cumplicidade não são coisas automáticas, que o dinheiro adquira ou se encontre assim, fácil, fácil. Gente com isso, entre si, independente da genética, é coisa rara. Raro é valioso – veja só o ouro e os diamantes. Então, é coisa boa demais, tal e qual o time do coração. Pode ganhar, pode perder, mas time do coração não se move do coração.

Nem avô.

O avô chegou no coração do neto tempos depois de já ter nascido o time do coração. O coração do avô estava distante da mãe, mas o neto inventou de nascer e tudo se ajeitou. O time vivia uma fase de ouro, cansava de cansar de vencer e ser campeoníssimo, e no meio disso tudo chega o neto e cai no colo do coração do avô.

Pois as cores daquele time foram desbaratadas na frente do neto desde que ele começou a virar gente, e ele só se via feito gente se pudesse torcer pro time do coração. Culpa do avô. E como esse avô idolatrava sua própria culpa! Anunciava aos quatro ventos esse “crime” cometido. Mas se ele mesmo era “vítima” do neto...

As cores se repetiam, os títulos também, e a primeira pisada da planta do pé do neto num estádio, quem proporcionou? Quem levou os olhinhos maravilhados do garoto junto a seus ídolos de TV, bem de pertinho, descerrando a beleza do significado da palavra “autógrafo”? Esse avô que vivia no colo do neto não perdia tempo, nem oportunidade, mesmo beirando os setenta.

Avô é bom, mas acaba.

Se o neto vivia imaginando como ia ser esse mundo sem o avô, nunca chegaria ao sentimento acometido em novembro de um ano qualquer. O time do coração seria o mesmo? O futebol seria o mesmo? O neto seria o mesmo, já que agora não podia mais ser assim classificado?

O time do coração já não vivia grandes glórias. O neto vivia grandes saudades. E via na grandeza de sua saudade a certificação – óbvia – de como aquele avô era especial. A felicidade do neto era tamanha só por causa disso, e engoliu a dor de olhar pro lado, durante o jogo do time do coração, e não contemplar cabelos brancos.

Depois do fim, vem o seguro. E ele seguiu pra quem de direito. Não era muito.

O neto ficou com o cheque na mão.

E dali o cheque não saía.

Vontade de rasgar.

Vontade de não existir o sistema financeiro internacional, ou a seguridade social. Sem isso, não receberia aquele benefício. Aquele malefício.

O cheque seguiu pra conta, o valor sumiu com algumas dívidas pendentes, foi-se de vez. Melhor assim.

A camisa do time do coração era bonita – sempre foi. O avô adoraria dar camisas ao neto. Mas as oficiais, bonitonas e históricas, não tinham preços condizentes. O neto guardou com carinho as camisas do time do coração que o avô tinha comprado numa lojinha de esportes do bairro, que não vendia as oficiais, mas as “oficiosas”.

O avô não deu as melhores camisas do time do coração. Ele quis. Não deu.

Neto é bom, mas envelhece. E parece que quanto mais velho, menos neto ele parece ser, ainda mais quando o avô já não pode mais aparecer pra tomar a bênção.

Neto envelhece, amadurece, faz faculdade.

Faz prova pra um milhão de concursos, namora firme, rompe os ligamentos do tornozelo, ajuda nas despesas de casa.

Nesse cotidiano brasileiro junta um décimo-terceiro aqui, parcela um pouquinho acolá, e vai conseguindo as oficiais. Vem edição especial pra colecionador do time do coração e ele cai na armadilha (implicitamente desejada).

O armário vai ficando bonito. São cinco camisas do time do coração, que orgulho.

Orgulho do avô. Cadê o avô pra ver esse armário bonito?

A memória pode ser traiçoeira, mas também é oportunista, graças a Deus.

A memória olha as camisas e lembra do avô.

A memória lembra do avô e lembra do cheque.

A memória lembra do cheque e do seu valor.

A memória recapitula os preços das cinco camisas do time do coração.

A memória faz a graça matemática de somar o que já estava predestinado.

A memória mostra pro neto que o avô não se foi sem fazer o que queria.

(*) Texto escrito faz um tempinho. A foto é de 1984, conforme minha idade na palma da mão.

6 comentários:

marcelo disse...

lindo texto, mestge. você está ficando bom nesse negócio de emocionar. como se não bastasse na véspera de ano-novo... seus leitores-amigos-admiradores agradecem.

Ló disse...

Lindo demais! Fiquei emocionada...bjs

Cris Crespo disse...

Lindo texto! Parabéns!

Abraços,

Cris

graça disse...

Caramba!!! lindo demais
A alegria se mistura à saudade,
chega doer fundo, uma dor que traz um orgulho e admiração pela pessoa que vc é e como consegue colocar tão lindo o sentir da vida.TE AMO, DEUS TE ABENÇOEI SEMPRE.

Lívia disse...

Lindo mesmo, me emocionou! bjs

Anônimo disse...

Querido
Que texto lindo!!!!!
Fiquei emocionada! Parabéns e que Deus lhe abençoe.
bjs
tia Neila