segunda-feira, 18 de janeiro de 2010


A culpa é do Fidel

Os franceses sabem fazer um bom filme (não podia ser diferente, já que o cinema foi inventado pelos irmãos Lumière). Um exemplo é “A culpa é do Fidel”, que consegue arrumar num ritmo ágil e sem correria um roteiro muito legal. As atuações, principalmente das crianças, valem o aluguel do DVD.

A história se passa em 1970 quando Anne-Marie, uma menina de aproximadamente 8 anos, filha de comunistas recém-engajados, percebe a polarização ideológica do mundo de então afetar o seu cotidiano. Não vou contar como isso se dá, pra não estragar as surpresas. Mas o filme nunca se afasta do ponto de vista da criança, e como ela tenta interpretar aquela realidade para sentir-se mais confortável.

O que posso dizer – e é um dos pontos que mais me chamou a atenção – é o modo de ver (e viver) o mundo que os pais de Anne-Marie encarnam. Se você olhar para 1971, em plena Guerra Fria, com os comunistas esperançosos e os capitalistas temerosos e prontos para destruir os inimigos, até se compreende. No entanto, o comportamento em questão perdura até os dias de hoje, inexplicavelmente.

Anne-Marie é repreendida pelo pai ao ser flagrada lendo quadrinhos da Disney. “Já não falei pra você não ler esse Mickey fascista?”. É forçada a participar de uma passeata para entender o que é solidariedade – e em determinado momento, a menina pensa que isso significa sempre ir com a maioria.

Ela também não compreende por que, no momento em que a mãe é solidária publicamente com as mulheres que abortaram contra a lei, o pai a condena por fazer isso em momento nada propício para o “movimento”. “Mas isso não é solidariedade?”, pergunta Anne-Marie, sem obter resposta convincente.

Anne-Marie coloca a mentalidade simplista dos pais sempre em xeque. Eles tentavam fazer uma criança entender realidades tipicamente adultas, sem sucesso. Hoje em dia, há que ainda pense como os pais de Anne-Marie, tentando encaixar numa lógica simplista as complexidades de nosso mundo.

Esses tipos, largamente encontrados em faculdades de ciências humanas, sindicatos e na classe política, enxerga (ou diz que enxerga) o mundo preto-no-branco, ignorando todo e qualquer contraste óbvio que a vida nos apresenta. Escolhem sempre a polarização – qualquer uma –, abdicam de pensar, de ouvir, de rever suas antigas opiniões, por mais desconexas que possam parecer. Nem tentam perceber as nuances do dia a dia, apenas censuram em nome da "causa".

A sorte deles é que não lidam com crianças como Anne-Marie. Ao contrário dela, os adultos não vão perturbar esses tipos com perguntas a torto e a direito, fiéis à demanda infantil dos infindáveis “por quês”. Mas nem por isso eles ficam quietos. Fazem questão de publicizar para o mundo ao redor que são superficialmente radicais e profundamente binários por opção – por mais ignorante que isso possa parecer.

Se em 1970 isso ainda se explicava, em pleno século XXI, com tantas certezas derrubadas por várias razões, esses tipos protagonizam o ridículo no cotidiano. Seus discursos e suas bandeiras parecem tão imbecis quanto ter a expectativa de que uma menina de 8 anos compreenda o que é fascismo.

Não obstante, esses tipos falam com suas audiências (forçadas ou não) como se estas fossem crianças. Constrangendo-as se pensam diferente deles, condenando-as pela ousadia em tomar outros rumos, rotulando-as pelas costas da forma mais covarde que puder. Só falta botar de castigo no cantinho ideológico.

Ver Anne-Marie expondo as incoerências da atitude desses tipos, personificados em seus pais, nos traz duas sensações: uma de vingança, se já fomos vítimas deles; outra, de contentamento, por estarmos cada vez mais certos que as certezas vão muito além da nossa vã racionalidade. E que é necessário a humildade de uma criança para viver sem maiores pesadelos, tampouco cinismo.

A vida de Anne-Marie sofre grandes e pequenas mudanças durante o filme, assim como seu modo de pensar e de se relacionar com quem está a seu alcance. Estranhos tornam-se próximos, raiva se transmuta em afeto, vergonha vira orgulho. E tudo da forma mais sincera e natural.

Certo estava o escritor Fernando Sabino, que escreveu seu epitáfio décadas antes de falecer: “Aqui jaz Fernando Sabino: nasceu homem, morreu menino.” Como a gente demora a perceber a importância desse processo! E enquanto não percebemos, como esses tipos teimam e se aproveitam da gente!

Sorte que os franceses ainda sabem fazer cinema, e me dão a chance de conhecer Anne-Marie.

3 comentários:

marcelo disse...

touché! gostei da imagem do "cantinho ideológico". praticamente um "naughty step".

ClarissaMach disse...

Sem comentários...

Vivo isso na pele... já ouvi muito Mestre-doutor que condena que o filho do cavaleiro da esperança produza livros cujo título traga a palavra "economia".

Como diz o meu digníssimo, o negócio é trabalhar a realidade que se apresenta. Solução mágica e definitiva, infelizmente, não há.

Rev. Evaldo Beranger disse...

Fiquei com vontade de ver o filme!
:))
Saudade!
bj

bia bacana