quinta-feira, 18 de junho de 2015

Exercício de empatia


Você está em casa, numa boa. Assistindo seu jogo de futebol ou sua novela, como você faz frequentemente, já pensando que amanhã tem que acordar, tomar café, ir trabalhar. Então surge um plantão extraordinário de notícias dizendo que seu país entrou em guerra contra algum vizinho.


 Era apenas a concretização de rumores que se avolumaram nos últimos meses. Você fica apreensivo. "E agora? No que isso pode me impactar? O que eu faço, mudo minha rotina? E minha esposa, e meus filhos?" Nenhuma pergunta tem resposta.

Você sai para trabalhar no dia seguinte, e até voltar pra casa ouve várias notícias de bombardeios e conflitos. À noite, a guerra é o assunto de todas as transmissões. Preocupado, você olha seus filhos dormindo. "Vem deitar", diz sua esposa, como tantas vezes.

No meio da noite, um estrondo. Tudo em ordem na sua casa e com seus filhos, que acordam assustados e vêm até você, chorando. Uma fumaça ao longe é vista da janela. O que na TV parecia distante de você subitamente parece bem próximo. Geograficamente, emocionalmente, politicamente.

 "E agora? No que isso pode me impactar? O que eu faço, mudo minha rotina? E minha esposa, e meus filhos?" Nenhuma pergunta tem resposta.

Quando você sai pra trabalhar, repara em algumas ruínas pelo caminho, ouve choros, vê feridos, trânsito péssimo, ambulâncias. Ao descer no ponto de ônibus e virar a esquina, você não acredita no que vê. Ou melhor, no que não vê mais.

Não há mais rua. Todos os prédios sumiram em escombros. Não há asfalto, calçada, lojas. Tudo veio abaixo, fruto de um bombardeio. "Que horas foi isso? Será que tinha gente nesses prédios?". Neste exato momento você lembra que alguns deles eram residenciais.

Atordoado, você permanece atento a não se sabe o quê. resolve voltar pra casa. Sua rua ainda está do jeito que você deixou, ufa. Quase por milagre, seus filhos não foram à escola, estão recebendo broncas da mãe. Uma pirraça matinal atrasou tudo e você nunca agradeceu tanto por uma pirraça.

Você abraça seus filhos e sua esposa, continuando o choro que começou na rua. Tem que explicar o que houve, porque isso tudo, e ela não acredita. As crianças parecem afetadas pelo seu estado de espírito, inquietas.

Estrondo.

E mais outro. Mais forte, logo, mais perto.

O prédio parece balançar.

A internet e a luz estão cortadas, sabe-se lá por que você ainda tem um rádio de pilha e ouve que o caos já se espalhou por todo o país. Saques, roubos, estupros, morte e tudo o que vem a reboque de um momento desses. Fanáticos pela última causa da vez avançam para subjugar os civis.

Você percebe que é preciso sair dali, fugir. Desesperadamente, pegam o que estiver ao alcance e procuram seguir o fluxo dos demais cidadãos aterrorizados em busca de locais de refúgios, quais sejam, onde sejam.

Não há mais trabalho, escola dos filhos, chope no fim do dia com os colegas, pelada de quinta, curso de inglês, visita à família...

"E minha família? Como eles estão?" Os telefones não funcionam, não há rede celular. As perguntas ficam sem resposta.

Forçosamente, você muda completamente sua vida de um dia pro outro sem saber quando tudo aquilo vai terminar.

Passam-se horas, dias, meses e a guerra não acaba. Os fanáticos vão chegando perto de onde vocês estão. Ficar é morrer, por bombas ou pelos inimigos de então. Ou sofrer nas mãos deles. Fugir é a única opção, para cada vez mais longe.

Você chega à fronteira. Um outro país que não está passando pela guerra, uma democracia estável, uma terra prometida pelas circunstâncias em que você se encontra. Sua mulher e seus filhos, cansados, doentes e sem esperança, te acompanham. "Vamos sair logo daqui!".

De um dia para o outro, tudo mudou em sua vida, você pensa. Lembra do jogo que você assistia na TV quando veio aquele plantão extraordinário. Você nunca imaginaria.

Sem garantias, a intenção é recomeçar em outro país, ou ao menos conseguir sossegar, sair da rota do perigo, viver um dia normal novamente para retomar uma vida normal. Faltam apenas alguns quilômetros, alguns metros, alguns passos.

Então você percebe que há algo diferente na paisagem. Algo que não havia ali antes, você conhece bem aquela região. E mesmo estranhando, você, sua mulher e seus filhos prosseguem a áspera jornada em busca de alguma liberdade, alguma autonomia. Os pés doem, as roupas estão sujas e gastas, o estômago vazio. Mas é logo ali, tá perto!

Logo vocês enxergam o que há de novo. Bem antes de cruzar a fronteira. E percebem que há muitos como vocês que pararam de andar.

É uma cerca.

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