quinta-feira, 31 de julho de 2003

Ô raça branca!

Que é o porta-voz? Alguém escolhido previamente por determinada figura ou instituição pública para que manifeste publicamente a opinião da pessoa ou órgão. Principalmente para serem jogados às feras da imprensa em entrevistas coletivas. O porta-voz não emite a própria opinião, mas é de se esperar que tenha o pensamento parecido com o de seus chefes. Assim, a fidelidade e credibilidade da informação apresentada são mais garantidas.

Uma das grandes surpresas da atualidade é que os porta-vozes estão se tornando uma classe cada vez mais independente, mas sem perceberem. Ao terem oportunidade pública de manifestarem determinada opinião de determinado estrato social/cultural etc, estão mais desprendidos para essa missão. Mesmo que não sejam porta-vozes oficiais, escalados para tal.

Exemplo: hoje um desses programas de fofoca da tarde (não, eu não vejo, mas minha avó estava vendo e eu prestei atenção em um trecho. Pode zoar, dizendo que é conversa fiada, que eu critico mas assisto. Sei que minha consciência está tranqüila!) informava que a bala perdida que matará a personagem da novela das oito virá de um assalto. E que os atores escolhidos para interpretarem os marginais são os mesmos de "Cidade de Deus". No que ASTRID FONTENELLE (faço questão de dizer quem é) dispara:

"Mas tinha que ser mesmo! Não vai ser o playboy branquinho que vai atirar bala perdida, mas aqueles pretos da favela!"

Astrid enterrou de vez sua carreira. De promissora VJ dos embriões da MTV, ex-apresentadora de um ótimo programa de entrevistas ("Pé na Cozinha", na emissora musical mesmo), ela assume o que de fato é: porta-voz informal. A cretina entonação de sua voz era a mesma de quando respondemos a uma pergunta imbecil. Manoel Carlos agradece, boa parte da Zona Sul cercada de morros agradece, todos os que concordam plenamente com a tresloucada Astrid agradecem a prestação de seu serviço. Preto favelado é marginal. Playboy branquinho não é.

Sim, você pode pensar que a maioria dos marginais (ou seja, que estão à margem da cidadania, da sociedade, dos direitos) são de cor negra, e que poderia ficar inverossímil para o público de massa de "Mulheres Apaixonadas" algo diferente. Mas a ação dos porta-vozes é eficaz, não se iludam. O cientista político Hélio Santos afirma: "Ninguém nasce racista". E como difundir o racismo? Em doses certeiras que despertam o (in)consciente coletivo, que torce baixinho para que um porta-voz apareça de vez em quando para estereotipar, descer a lenha na auto-estima de quem já passou por 350 anos de escravidão e até hoje sofre as conseqüências disso.

Os frutos dessas irresponsabilidades não-assumidas (ou responsabilizadas como devem ser)? Obstáculos para o negro ter a chance de se afirmar, de vencer preconceitos e barreiras veladas apenas porque é de cor diferente. APENAS PORQUE É DE COR DIFERENTE! DE PELE DIFERENTE, DE SUPERFÍCIE DIFERENTE! Todo mundo sabe que acontece, e todo mundo se cala! Quem tem amigos negros: pense neles. Pense no que passam e no que você e eu, brancos, nunca vamos passar. Além disso tudo, ter que ouvir porta-vozes escrotos reforçando a violência e a raiva da qual tanto se protegem.

Emocionalmente, acabei gastando linhas com esse descarado desserviço de um lixo cultural da pior qualidade. Mas as sutilezas são mais nocivas. Tanto que eu e você, que concorda com o descrito neste artigo, podemos estar encampando sem saber. Afinal, a Cidade de Deus é o lugar mais perigoso do Rio, não é? Aquele neguinho do outro lado da rua é o favorito para bater nossa carteira, não é? Ação afirmativa é dizer sim ao negro quando o emprego é de jogador de futebol, porteiro, empregada doméstica, zelador, faxineiro, não é? Ainda que sejam todas profissões dignas. Você as acha dignas, não é?

Somos todos criação de Deus, componentes da raça humana.

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