sábado, 16 de agosto de 2003

Assim eles vivem

Na última quinta-feira pude conferir outra ótima mostra de cinema no CCBB. Era o festival alemão "Assim Vivemos", uma série de documentários, animações e até filmes de ficção sobre o mundo dos portadores de deficiência. Para minha alegria, só documentários foram exibidos nesse dia. Quem assistiu às três produções da tarde saiu de lá enriquecido humanamente.

Criaturas que nascem em segredo é um filme brasileiro sobre nanismo, com vários depoimentos. Um casal de anões no qual a esposa nunca quis namorar um deles, até conhecer o marido - com o qual vive até hoje e teve duas filhas sem a disfunção. Suas falas são hilárias, como a do pai agradecendo a Deus pelas meninas nunca pedirem colo; ou ambos explicando que as filhas, ao crescerem, usavam os móveis e apetrechos dos pais para brincar de casinha. Outros anões contam sua experiência de vida, relatando problemas e preconceitos a serem vencidos até hoje, como: rejeição ou vergonha dos pais (a ponto de, quando crianças, não poderem sair de casa); gozações diárias, a dificuldade em serem aceitos pelo sexo oposto ou no mercado de trabalho. O filme ainda informa que, antigamente, não restava aos anões opções senão o circo ou uma assumida condição de exclusão pública, social, emocional, familiar. Apenas porque nasceram menores que a média.

Minha solidão, sua solidão mostra um dia na vida de um polonês que provavelmente tem paralisia cerebral (isso não é explicado, mas o cara parece o personagem do filme "Meu Pé Esquerdo", com Daniel Day-Lewis). Sempre na cadeira de rodas, membros atrofiados e dificuldade para falar, ele se desloca para o trabalho e demais atividades externas com determinação. Só aceita ajuda em situações que não lhe deixam opção, como ser colocado na cadeira ou vestir-se. No mais, o cara é um jornalista que entrevista as pessoas sabe como? Leva o gravador no colo e uma lista de perguntas para a pessoa. Depois, ouve pausadamente as partes da entrevista e as digita... com o nariz! (Estou digitando essa frase com o meu só pra sentir como é.) E são artigos imensos, a ponto dos editores pedirem para que ele seja mais breve. Ainda são mostradas, quase sem cortes, cenas de suas conversas com uma amiga, sua alimentação e a hora de ir dormir. Um ritmo lento que faz com que nós, espectadores, nos cansemos. Até lembrarmos que o cara enfrenta isso 24 horas por dia...

Minha mãe é uma rainha, graças a Deus, é um documentário. Se fosse ficção, dúvidas iriam pairar sobre sua veracidade, ainda que cravassem o bordão "baseado em fatos reais". Talvez até forjasse maldosas opiniões sobre os escrúpulos do roteirista. É a história de um casal onde a mulher é deficiente física. No que pude perceber, não possui movimentos da cintura pra baixo e tem as mãos atrofiadas. Pois um homem sem nenhum tipo de deficiência se apaixonou por ela, no que foi correspondido. Os dois "abrem o jogo", falando até dos assuntos mais íntimos do casal, como sexo e perguntas sobre a origem dos sentimentos de um pelo outro. Eles têm uma filha, e a mãe deficiente faz desenhos artísticos a lápis... com a boca, que são vendidos para ajudar na renda familiar.

Creio que um dos objetivos de tais filmes é demonstrar que qualquer deficiente, por mais difícil que seja seu problema, pode levar uma vida "normal" (usar essa definição até perde o sentido). É claro que todos eles (à exceção dos anões) possuíam apoio de entidades e condições financeiras para seus equipamentos e estilos de vida. Ainda assim, é deslumbrante acompanhar seus relatos, perceber que eles se aceitam como são. E uma questão à qual estou sendo levado mais uma vez: como preconceitos podem ser tão subjetivos em nós, a ponto de não percebermos que temos opinião formada e tendência comportamental em relação a pessoas que já sofrem por ser diferentes. Isso é cruel.

Ao mesmo tempo, é inevitável sentir-se bem por não ser deficiente. Mas ainda assim, questionar por que somos tão insatisfeitos com o que somos, às vezes inquiridores demais da Providência Divina com os rumos de nossa vida. Ou com a qualidade de nossos contornos em um mundo consumista e descartável, publicista da vaidade como virtude inquestionável, formando adoradores do corpo perfeito nunca atingível, criadores de culpas e terrores emocionais. Assim vivemos.

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