domingo, 10 de agosto de 2003

A morte absolve

Vão me chamar de insensível ou de politicamente incorreto por abordar este assunto logo após a morte de Roberto Marinho. Mas como este blog será um dos poucos (senão o único) veículos de comunicação a falar disso, vou em frente. Impressiona a capacidade da morte em absolver as pessoas, ou ao menos atenuar seu histórico.

O patriarca das Organizações Globo é tratado como jornalista, não empresário; como alguém que apostou no Brasil, que amou o país; alguém que sempre valorizou a cultura; que achava que o jornal deveria tomar posições políticas; etc e tal. E isso não apenas nas palavras de seu conglomerado, mas de concorrentes históricos e até mesmo de desafetos correntes (Brizola chamando Marinho de "adversário cortês" é um insulto a minha inteligência).

As homenagens a Roberto Marinho são capitalizadas ao extremo pela Globo (talvez saia do ameaçador abismo do "vermelho" em suas contas por um tempo). E, com a competência de sempre, inculcam nas mentes de milhões de brasileiros a magnânima figura do patriarca. Parece um herói que conta apenas com virtudes, que colaborou apenas para o bom serviço do país.

Será apagada da nossa memória a conivência da Globo com a ditadura; a teimosia em não cobrir o movimento "Diretas Já", até o povo gritar nas imagens de outros canais "O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo". Também esqueceremos da edição do debate final entre Collor e Lula, decisivo para as urnas (mais a edição que o debate) para isso, aceitaremos a desculpa de Dr. Roberto, dizendo que "se equivocou" ao apoiar Jânio e Collor. Pequenos equívocos daquele que pouco poder possuía, do tipo que recebia candidatos a presidência em época de eleições para "conversas amenas".

Esqueceremos do monopólio da Rede Globo (99% do território nacional em transmissão), suprimindo as produções regionais e praticando "canibalismo" com os demais canais, tirando seus expoentes para "domesticá-los" no Jardim Botânico. Esqueceremos da censura ao documentário Muito Além do Cidadão Kane, da BBC de Londres, que tratava dos escândalos escondidos da Globo, bem como seus prejuízos para a sociedade. Um vídeo que contribuiria para o esclarecimento dos cidadãos, um princípio sempre apregoado pela ilibada carreira do Dr. Roberto.

O que vai ficar é o lema da Fundação Roberto Marinho: Educação é tudo. A mesma fonte que professa tal lema é a que nos traz loiras alienantes de crianças; que produz o raso e sempre tendencioso jornalismo na hora do jantar; que pela teledramaturgia explorou a situação difícil em que artistas perseguidos pela ditadura se encontravam na década de 70 (sem emprego) para dali sedimentar sua ideologia, sutilmente manipuladora de consciências. (Boni diz que a TV não tem a capacidade de mudar comportamentos. Outro insulto a minha inteligência)

A história, em nossa "Idade Mídia", como diz Ramonet, será contada com a cômoda comoção que a morte proporciona para tal objetivo. É preciso respeito ao luto, à família, ao protocolo, à memória. Agora não é hora para questionamentos sobre o legado. Nunca vai ser a hora para pensar se Dr. Roberto apostou tanto ou amou tanto o país como se diz. Se não amou mais seu poder consolidado em influenciar os destinos desse país em questão.

O luto oficial é de três dias. O luto de se enxergar os meios de comunicação como espaços democráticos e transparentes, esse, paradoxalmente, está mais vivo do que nunca. Parabéns, Dr. Roberto.

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