domingo, 31 de dezembro de 2006


Eu quero um jornalismo melhor

Cheguei à sala de meu amigo André Mello com a cara de quem acabara de escrever o artigo abaixo ("Eu sou do Rio de Janeiro" - de fato, eu tinha acabado de escrever). Triste por ver o Rio sitiado novamente e um pouco temeroso com minha volta pra casa. Não puxei uma cadeira, explicando que precisava encontrar minha irmã para irmos logo. Sem levantar, ele me pergunta:

- Por causa dos boatos?

Digo que sim, que a estação do metrô da Saens Peña estava fechada, e que eu estava meio nervoso com tudo aquilo. Ele me fala que, quanto às causas dos ataques criminosos à cidade, tudo parece ser reduzido a questões pontuais, como um descontentamento com o fim das regalias nas prisões, ou um alerta ao novo governo do estado.

- Nós sabemos que há algo maior por trás disso. É um discurso do medo construído na mídia que deixa as pessoas nesse estado de pânico.

- Calma aí, André. De ontem para hoje aconteceram ataques simultâneos em todas as partes da cidade.

- Eu andei por toda a cidade hoje e estou aqui.

- Eu também! Concordo que muitas vezes o discurso midiático insufla "ondas de terror" na população, mas agora são fatos: um ônibus foi incendiado na Avenida Brasil, pessoas morreram carbonizadas. Fora o que já te disse, ocorrências em toda a cidade, em vários pontos.

André não altera a entonação da voz e nem se levanta da cadeira. Mas não possui um ar cínico ou indiferente para com a situação, ou com meu relato. Jornalista, antropólogo e pastor presbiteriano, sabe que não pode jogar palavras vazias a seus interlocutores.

- Existem algumas coisas a serem consideradas no contexto do momento. Primeiro, há um vácuo de notícias, é uma semana tradicionalmente fraca pra isso. Depois, estamos no "limbo" entre governos estaduais: o comandante da polícia de agora não continua na segunda-feira, e o que vai assumir ainda não manda nada.

- É verdade. Ainda assim, André, os episódios de violência aconteceram.

- Sim, mas o que precisamos perceber é que a maioria das ocorrências não é inédita. A não ser o ônibus interestadual incendiado. É algo diferente, um ato de terror. Ainda assim, já houve um incêndio antes, só que o ônibus era intermunicipal (ele se refere ao ônibus 350, incendiado em Brás de Pina, em 2005. E outros foram incendiados sem vítimas, em alguns pontos da cidade e da Baixada Fluminense). Os tiros, assaltos, granadas, todos já ocorreram outras vezes na cidade do Rio de Janeiro. Se você pegar o jornal O Povo de manhã verá o que ocorre nas madrugadas toda semana, são episódios como esses.

- Mas a gente não pode banalizar os acontecimentos assim...

- Não é banalizar, não. Mas ninguém fala do pior: que a violência está imiscuída na nossa sociedade, e tão corriqueira que, aí sim, banalizamos ao não destacarmos esse aspecto. Por que surgem essas "ondas de terror" em todos os telejornais, de repente? Olha só...Você já leu esse livro aqui?

André pega de sua estante Cultura do Medo, de Barry Glassner, que fez uma ponta no documentário Tiros em Columbine, de Michael Moore. Na contracapa, as aspas do autor: "A TV não inventa o que mostra, mas escolhe o que mostrar". Na orelha do livro, outra frase: "A poluição é algo bem mais preocupante e perigoso que todas as outras coisas das quais a mídia insiste que tenhamos medo". É por aí que vai o pensamento de André. Em nenhum momento ele demonstra insensibilidade para com as pessoas que sofreram com os episódios de violência de ontem, pelo contrário: solidariza-se com aqueles que já sofreram antes mas que não ofereciam o Ibope que convinha - como numa última semana do ano, raquítica em notícias.

Imediatamente me lembrei que, em época de Copa do Mundo ou na semana do Carnaval, o Rio de Janeiro é a cidade mais pacífica do planeta. Nenhuma ocorrência violenta é noticiada.

- Precisamos nos preocupar com a situação dos presídios, por exemplo. Quem acha que a solução é lotar as penitenciárias ou reduzir a maioridade penal nunca esteve num presídio. A situação é tão caótica que daqui a um tempo as rebeliões e fugas em massa generalizadas não serão contidas. Aí sim teremos um terror incontrolável nas ruas. Como no exemplo da poluição, estamos muito pouco preocupados com o que realmente importa e pode causar transtornos da ordem social.

As políticas públicas que atendem mais aos sintomas da hora do pânico, em vez de agir na origem do problema: raramente sou "torpedeado" por notícias sobre isso.

A hora passa e eu realmente preciso ir. Levo emprestado o livro, e saio da sala de André mais calmo. Não menos preocupado com a violência urbana da metrópole, mas bem mais imune às "ondas de terror" de fermento midiático. Resolvo desligar a TV até o ano que vem.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2006



Eu sou do Rio de Janeiro

Do alto andar aonde trabalho sinto-me Robinson Crusoé. Uma vez cheguei mais tarde e, duas horas antes, quase em frente ao meu prédio, um passante foi baleado por estar perto de um assalto. Da janela deu pra ver o vermelho sangue. Centro do Rio de Janeiro.

Há duas semanas, a duas quadras de onde trabalho, um vigia do banco Itaú atirou numa pessoa que, parada na porta giratória, pareceu-lhe suspeito ladrão. Não era, mas morreu assim mesmo. Hoje, passando em frente à agência aonde aconteceu o episódio, vejo uma manifestação com cartazes dizendo que o tiro foi movido a racismo. E que o assassino está solto.

Ontem minha cidade foi alvo de estratégicos ataques terroristas nada preconceituosos: atingiram moradores da Zona Sul à Zona Norte, do outro lado da ponte Rio-Niterói e também visitantes de Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo. Destes, sete morreram queimados dentro de um ônibus recém-assaltado na Avenida Brasil e em seguida incendiado. Um policial que dava plantão numa cabine na Praia de Botafogo pela primeira vez morreu metralhado, além do ambulante que fazia ponto ao lado. Delegacias também foram atacadas, algumas com granadas.

Tenho um amigo de infância que hoje é policial, noivo de uma amiga que é de Cachoeiro do Itapemirim. Ele está de férias, ela estava em casa, eu estou em paz (agora).

Sinto-me Robinson Crusoé ao não ser atingido (diretamente) por nada disso, porém tudo acontecendo ao meu redor. Já andei muito pela Avenida Brasil, trabalhando ou chegando de viagem; já passei muito por portas giratórias dos bancos, já trabalhei quatro anos num deles; todo dia ando pelas inúmeras ruas do Centro; sempre vou ao Cinemark Botafogo; já peguei carona com meu amigo de infância, voltando do futebol.

Sinto-me Robinson Crusoé ao saber que os chefões do crime têm regalias e que as mesmas, quando ameaçadas, param e matam a cidade. Ou quando o jornal local ofende os moradores ao entrevistar ao vivo o presidente da Riotur, para que o mesmo discorra sobre os prejuízos do episódio para o reveillon e para a chegada de turistas na cidade.

Hoje discordei de uma amiga quando ela disse que o mundo era um lixo, que os seres humanos eram um lixo, e que por isso ela não queria gerar descendência.

Eu, Robinson Crusoé que estou, só queria continuar a discordar.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

A culpa é de JK

Quebremos o mito. Somente os arquitetos devem dar graças pelo governo de Juscelino Kubitschek. Afinal, Brasília é um marco mundial da qualidade dos brasileiros Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Fora isso, a cidade é uma fortaleza que cristalizou no espaço público e geográfico brasileiro a impunidade inconseqüente. É uma ilha em terra firme, cercada de distância do povo, fisicamente mesmo. E isso foi uma tragédia para a democracia.

O aumento de 91% dos salários dos parlamentares do Congresso, dado pelos próprios, é uma prova disso. Renan Calheiros e Aldo Rebelo, respectivamente presidentes do Senado e da Câmara, transparecem na foto acima a cara de quem está fazendo muita caquinha. Mas sabem que o único ônus que vão enfrentar é o mau humor da opinião pública. Nada mais. Nunca a opinião pública foi tão fraca, e Brasília ajuda nesse processo.

"Se essa palhaçada fosse na Cinelândia/Ia ter muita gente pra juntar na saída/Pra fazer justiça, uma vez na vida". Os versos de Herbert Vianna nunca foram tão atuais. Se o Senado e a Câmara continuassem no centro da cidade do Rio de Janeiro, ao lado do povo, cuja maioria circula por ali na busca diária de salários nada astronômicos, duvido que estariam tão tranqüilos em aprovar um aumento desses. Por mais que um exaltado quisesse chegar às mortais vias de fato - que nossa racionalidade condena mas, confessemos, dá vontade - no mínimo teriam que agüentar protestos bem próximos.

Mas eles estão em Brasília. No meio do deserto Planalto Central, numa cidade inventada sem vizinhança. E, na Praça dos Três Poderes, antes de se chegar aos Palácios e Casas Parlamentares, há um lago que anula qualquer tentativa de aproximação não autorizada. JK, com sua idéia incensada até hoje, deixou o povo longe dos políticos, e realizou o sonho obscuro de todo político mal-intencionado: ficar distante do povo enquanto não há novas eleições. Só por essa loucura, JK já pode ser considerado um desastre para o país. Sua cidade inviabilizou ainda mais a democracia.

Quando vier a próxima proposta de Reforma da Previdência (que não duvido que possa ser necessária, haja vista o envelhecimento da população), cobremos dos nossos representantes o exemplo vindo de cima. O corte ou congelamento dos salários deles; o corte nos jetons e auxílios paletó, gasolina, cafézinho; a demissão de metade dos assessores de gabinete; a extinção da indecente aposentadoria vitalícia para ex-presidentes, ex-governadores, ex-senadores e ex-deputados, que conseguem conquistá-la com dois mandatos apenas (no caso do presidente, um mandato). Não se engane com a desculpa de que o Congresso cortou despesas que possibilitaram o aumento. A questão é mais moral do que econômica. Não é justo, uma vez que não pode ser aplicado aos demais cidadãos.

Após a catarse, vamos ao espelho: você, que deve se lembrar em quem votou, pesquise se ele votou a favor desse indecente aumento (a votação foi dos líderes dos partidos, mas ainda assim o candidato, que pertence a um partido, deve uma explicação). Se tiver contato pessoal com ele, pergunte por que votou a favor (ou foi conivente) diante da gritante desigualdade social brasileira, diante da carga tributária avassaladora e do leão morto a cada dia pela maioria dos brasileiros, tão somente para sobreviver com dignidade. Incomode-o, apesar de Brasília. E não vote nele outra vez, pra que todos aprendam. Faça a sua parte. Ou seja omisso e engula caladinho essa nova falta de vergonha. E não venha murmurar perto de mim depois...

segunda-feira, 11 de dezembro de 2006


Mrs. Northfleet


Ellen Gracie Northfleet, brasileira. Primeira mulher a presidir o Supremo Tribunal Federal (STF), instância máxima do Poder Judiciário. Devido ao cargo, na ausência do Presidente da República, do Vice, e dos presidentes da Câmara e do Senado, ela pode ser também a primeira mulher a exercer o cargo de mandatária-chefe da nação. Deve ter enfrentado preconceitos e machismos da sociedade para exercer sua vocação. Para chegar ao posto em que está, também deve ter estudado muito as leis do país, principalmente a Constituição Nacional.

Ellen, semanas atrás, propôs que o teto dos salários dos juízes dos Ministérios Públicos Estaduais deveria ser equiparado ao teto dos ministros do STF. Nos valores atuais, o salário passaria de R$ 22.111,00 para R$ 24.500,00. Como se já não bastasse a Câmara e o Senado defenderem o aumento de 91% dos seus vencimentos, recentemente. Se o Executivo passou por escândalos e o Legislativo prosseguiu legislando em causa própria, só faltava o Judiciário se pronunciar. Poderia condenar publicamente a falta de bom senso dos congressistas, mas não. Com a proposta de Ellen, legitimou o descalabro flagrante com o dinheiro público. Também em causa própria.

Gracie não esperava a grita da opinião pública, que rechaçou tal atitude de quem já recebe seus proventos muito acima da média dos brasileiros, sem contar os auxílios congênitos. Averiguou e disse que cerca de 300 juízes já recebiam acima do teto, ilegalmente. Não disse quem ou onde, deixando no ar a imprecisão da informação e a desconfiança de que soltou um oportuno sofisma pra acalmar os ânimos que ela mesma exaltou.

Northfleet, com toda a capacidade intelectual que deve ter para ser ministra do STF, parece não perceber que a desigualdade social agrava a violência. Que poucos com tanto e tantos com tão pouco são um vácuo perfeito para o sentimento de injustiça geral e para alguns que preferem fazer a justiça com as próprias mãos. Inspirados em Robin Hood na prática (mas não no caráter), existem para tomar dos outros o que lhes falta, ou o que cobiçam.

Que os astutos leitores deste blog não percebam nestes parágrafos a complacência com bandidos. Roubou, que seja preso. No entanto, a sensação de "enxugar gelo" é constante, e não seria melhor se, de uma vez por todas, os líderes de nosso país resolvessem caminhar na direção de reduzir a desigualdade? Será que a violência não seria menor um dia? Mas quando menos esperamos, o Executivo desvia fundos, o Legislativo mira o umbigo, e o Judiciário consente e pede o seu "naco".

Ellen Gracie Northfleet veio ao Rio de Janeiro e uma quadrilha a assaltou na Linha Vermelha. Num lugar em que muitos trabalhadores que ganham bem menos que a ministra já foram assaltados. Veria ela alguma relação de sua indecente proposta com o acontecido? "Como você consegue viver nessa cidade?", desabafou Ellen com um amigo carioca, após o assalto. Da mesma maneira que tentamos viver nesse país, Gracie. Da mesma maneira heróica que, dia após dia, teimamos em acreditar que nosso Brasil diminuirá seus atrasos de mentalidade e visão de governo, apesar de seus líderes (em quem votamos, não esqueçamos disso também). Conseguimos viver, Northflleet, com salários básicos, sobreviver com salários mínimos, conviver de perto com a violência e suspirar tristes diante de exemplos como o do Judiciário. Não podemos votar para o STF, infelizmente.

Ellen Gracie Northfleet, brasileira. Exímia conhecedora da Constituição Nacional, que busca promover a igualdade de direitos. Parece desinformada sobre o país que habita e onde rege as leis, e insensível para com os cidadãos que precisam suportá-las na frieza da falta de bom senso. Ellen Gracie Northflleet, brasileira? Nem no nome. Se pensa que vive em outro país - como demonstram suas ações e pronunciamentos - que se desaloje bem rápido do nosso. Com todos os seus pares compadres.

quinta-feira, 16 de novembro de 2006


Cafuné nevrálgico

- Barra ou ponto?

Nunca tinha pensado seriamente na questão. Barra ou ponto? Alguma diferença iconográfica que refletisse a essência do compromisso? Ah, eu não pensei nisso. Pensei no preço, no melhor momento de comprar e de anunciar a toda a família, nos arranhões, nos cuidados, na sua durabilidade.

- Barra ou ponto?

Olhei para ela, depois olhei para Carolina e perguntei, hesitante:

- Ponto, né? O que você acha...?

- Ponto.

Pronto. Ponto. E ponto.

Seria "Carolina - 26.10.03" na minha e "Marcos - 26.10.03" na dela. Dia do começo do namoro. Agora, barra ou ponto? Isso é pergunta que se faça? Não por ser indiscreta ou algo do tipo, mas eu pensaria se na aliança a data seria 26/10/03 (com barra) ou 26.10.03 (com ponto)?

Não existe assunto tão torpedeado hoje quanto o casamento. No entanto, as pessoas seguem se casando. Seja tradicionalmente, seja "juntando", seja de qualquer outra forma (e agora até de gênero), as pessoas continuam criando a expectativa do casamento, com que cara ele tenha. Permanecem na ansiedade de, um dia, terem alguém por mais tempo ao seu lado, um compromisso. Sim, as pessoas querem compromisso. É só ver que quase ninguém suporta uma traição, apesar do folclore em torno do assunto. Não raro, paga-se uma traição com outra, pra fazer o "canalha" ou a "vaca" sentirem o mesmo (ou, no mínimo, deseja-se isso). Ou seja, nada de sublimação, é vingança com a mesma moeda devastadora de emoções.

Também não colam muito os discursos galináceos de que esse papo de compromisso e ter alguém a seu lado não é comigo, eu quero aproveitar a vida e ser feliz! Sim, vai fazer isso, mas um dia, num muxoxo para si próprio, a fim de não passar vergonha diante dos demais, olhará para o seu dedo e para sua cama de solteiro e reconhecerá que, sim, seria ótimo um cafuné no pescoço. E não qualquer cafuné: aquele de quem sabe o ponto nevrálgico da satisfação que um cafuné pode proporcionar, tão somente porque te conhece do avesso e sabe do que e como você gosta. Fruto de convivência, compromisso, aliança (com barra ou ponto, ou figurativamente).

Os discursos ressaltando que "não nascemos para a monogamia, veja só os animais!" (nossa, hoje nos orgulhamos de ser comparados com animais!) ainda se perpetuarão. Mas como todo bem elaborado discurso, terá a provação da realidade para tentar se sustentar e seguir orientando vidas. Continuará nesse propósito, até encontrar o caminho da humildade e reconhecer: "meu pescoço por um cafuné no próprio".

Há os pesares, as crises que surgem durante os relacionamentos, as complexidades que sabemos que existem e que não merecem ser tratadas superficialmente aqui. Ainda assim, essa raça humana continua querendo casar, ter compromisso. Por que, já que há sempre um "perrengue" de plantão pra azedar o clima e depois ainda ter que dividir o mesmo cobertor à noite? Ora, eu não me dispus a explicar o fenômeno, mas a constatar. Só tenha absoluta certeza de que o cafuné nevrálgico é intraduzível.

Quando você perceber que "barra ou ponto?"- uma pergunta superficial que se refere a uma inscrição literalmente superficial numa jóia - consegue ter a profundidade de te deixar hesitante e gestor de todos esses devaneios, é capaz de você concordar comigo. E potencialmente próximo da satisfação de estar a dois.

quarta-feira, 8 de novembro de 2006



Não é outro

Você caminha pelo centro da cidade do Rio de Janeiro e olha pra cima. Como em toda grande metrópole, lá estão os altos prédios, na avassaladora maioria locais de trabalho. Você volta o seu olhar para o horizonte e, qualquer que seja a sua altura, ali estão pessoas e mais pessoas indo e vindo, na avassaladora maioria em busca de comida, isto é, almoço (você olha ao meio-dia, ok?).

Você sai mais cedo, às 11:45, também em busca de comida - fresca, quentinha - e de um ambiente necessário para uma paz gastronômica - sem estar abarrotado, para não haver engarrafamento de pratos e Visa Electron no serve-te a ti mesmo (self-service).

Você normalmente andaria rápido, com reflexos acurados para desviar de um possível encontrão ou morte enquanto atravessa a larga rua apinhada. Mas você resolve fazer diferente: já saiu mais cedo mesmo, resolve andar como gente normal (na sua avassaladora maioria, pessoas que trabalham no centro e almoçam todas na mesma hora não parecem normais). Para os demais, você anda devagar e é obstáculo aos esfomeados. Para você, é um rompante da rotina que muitas vezes você teve vontade de viver e, sem saber direito por que cargas culturais d'água, você nunca conseguiu.

Aliás, se assim não fosse, você não olharia como olhou no primeiro parágrafo.

Você come e estranha a calmaria de sua hora de almoço. Você termina, estranha que terminou e que ainda tem meia hora antes de voltar ao seu alto prédio. Você se dá o direito de ter uma sobremesa entre livros na Travessa do Ouvidor, sentir o aroma dos papéis e de um perfume que aquele estabelecimento coloca (talvez numa estratégia de deixar cada visitante à vontade até correr sério risco de virar clientela).

Você olha novamente para cima, para o horizonte, para as pessoas, para o mundo corriqueiro de cada hora de almoço e se espanta. A surpresa vem pelo fato de que, quando você olha pra tudo isso, inevitavelmente você se vê olhando pra si. Olha pra você. Olha pra isso! Olha pra esse, ou pra essa. Pra ti.

Olha como você deixa de ser você se você se enreda pelo ritmo imposto. Pelas imposições que não se justificam e sequer se explicam. Você se olha e não se reconhece. Você precisa parar com isso. Você precisa parar. Você precisa de você de volta.

Você precisa estar novamente - e tão somente - a vossa mercê.

quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Nas passadas



Eu gosto de correr.

Então me vi correndo numa pista, dessas que circundam o gramado central dos estádios olímpicos. Não era corrida rasa, eu parecia correr numa velocidade constante e prudente para preservar meu fôlego até o fim. Na verdade, parecia que eu estava num de meus treinos diários, para manter meu condicionamento físico. Não havia mais ninguém no estádio: nem nas arquibancadas, nem na pista. Era apenas eu e um dia ensolarado, correndo e suando, diligentemente.

De repente comecei a reparar num vulto à minha frente, na pista. Minha curiosidade me fez acelerar, deixando um pouco de lado a disciplina do treino. A imagem ficava mais nítida, e eu já podia perceber que era uma pessoa branca, de camiseta e meias idem, e calção preto, correndo. Achei estranho, pois não tinha visto ninguém entrar no estádio ou na pista. Sozinho por ali, seria difícil alguém passar desapercebido por mim.

A silhueta me é familiar, mas de costas você não tem certeza absoluta se conhece ou não qualquer pessoa. Não tinha outra escolha senão correr mais, e eu já percebia que o ritmo daquele desconhecido era mais forte que o meu, e também mais firme e constante. Fui chegando, chegando e de curioso passei a intrigado: eu conheço esse cara. Mas de onde? Por coincidência, sua roupa era exatamente igual à minha. Eu suava bem mais do que quando o avistei, e agora meu objetivo era emparelhar com ele. Objetivo é eufemismo, tinha virado obssessão. Quem é esse cara?

Então eu consegui, fiquei bem ao lado dele, fazendo um esforço extra, concentrado no momento em que ia matar minha curiosidade. Saber quem era aquele estranho, aquele intruso do meu treino, aquele "copião" dos meus trajes, aquele que corria mais rápido (e melhor) do que eu.

Tive que controlar o susto. O corredor era eu. Talvez fosse um clone, um sósia, uma brincadeira de mau gosto. Mas tinha certeza que não. Era eu, de alguma maneira em outra dimensão da vida, em outro momento. Correndo mais e melhor do que eu. Ele (eu?) não se abalava, permanecia na sua velocidade, sequer se virou para me olhar também. Depois de uma súbita parada devido ao susto, fiquei em desvantagem, eu (ele?) já estava de novo lá na frente. Percebi que eu não conseguia mais acompanhá-lo. Por mais forças que empenhasse, ficava entre nós aquela distância na pista. Eu corria mais do que eu mesmo.

A dificuldade de processar as mudanças que acontecem em nossa vida, sejam elas boas ou más, quando ocorridas em curto espaço de tempo. Os sintomas daquela "avalanche" surgindo e a gente sem saber de onde vêm, um descontrole de emoções não-identificáveis na sua totalidade. O medo do novo, do desconhecido. Por incrível que pareça, o medo de ser feliz e "cair dentro" do propósito de felicidade há tempos anunciado e para o qual nos preparávamos. A própria preparação surpreendida pelos fatos que andaram mais rápido que qualquer planejamento sóbrio.

Resta-me voltar à pista e me dar conta de que tenho corrido mais do que eu mesmo. Volto a meu ritmo, sabendo da necessidade do treino e da disciplina. Porém me lembro de algo muito importante. Algo mais importante do que todo o plano de treinamento, o melhor tênis ou as roupas mais leves para melhorar meu desempenho. Mais especial até do que passar pela inesquecível experiência de me ver correndo contra mim numa pista - isso seria um desespero se não tivesse me lembrado do que lembrei então.

Eu lembrei que gosto de correr.

Sem essa constatação, nunca me verei entrelaçando os braços comigo mesmo numa pista, correndo no mesmo ritmo, até me ultrapassar, ganhar confiança e terreno. E olhar pra trás, percebendo que desapareci, que estava sozinho novamente. Mas que não seria pela última vez.

terça-feira, 26 de setembro de 2006

Considerações sobre o silêncio



Hesitei por alguns instantes ao começar este artigo, talvez pelo próprio assunto e seu efeito em mim. Tenho olhado (ouvido?) o silêncio de uma maneira inédita em minha vida.

Para mim, o silêncio era, quase automaticamente, o mesmo que omissão. "Lavar as mãos", não fazer minha parte na realidade que estava ao meu alcance. Silenciar sempre significou deixar outros decidirem por mim, escolher o caminho mais fácil. Praticamente uma covardia.

Considerando que sou jornalista, isto é, profissional de Comunicação; considerando que sou uma pessoa comunicativa e desenvolvi razoável oratória e argumentação; considerando que desde os tempos de Colégio Pedro II considero-me politizado e com vontade de intervir nos contextos em meu redor... Como considerar o silêncio?

(Hesito, em silêncio, mais alguns instantes antes de continuar a escrever.)

Tenho percebido que o silêncio pode nos preservar. Pode nos oxigenar perante o bombardeio de ruídos de comunicação e o excesso de vozes e informações. Ele permite que possamos nos ouvir, ainda que estejamos em silêncio.

Passar pela experiência de opinar e sequer ser considerado pelo outro que pensa em direção contrária: isso é marcante. Perceber quando você apresenta argumentos sinceros, em busca de um consenso, e nada caminha para o que você propôs... Não seria hora de silenciar um pouco?

Silenciar facilita também nossa autocrítica. Diante da ansiedade constante em opinar, argumentar, marcar pública posição, dificilmente refletimos de onde vem tanta certeza. Se ela possui fundamento ou é apenas soberba "enlatada". No silêncio esses questionamentos surgem espontaneamente, acredite.

E convenhamos: ficar em silêncio é árduo. Raramente é nossa primeira opção. O silêncio, na maioria das vezes, é o que nos resta, quase nunca é uma decisão. É render-se à derrota de seus argumentos, é quando "nossa inteligência foi desprezada" - assim pensamos. Cônscios ou forçosamente, o silêncio é um exercício de humildade.

Óbvio que não estou renunciando ao debate ou ao diálogo. Afinal de contas, escrevi e publiquei este artigo. E a caixa de comentários abaixo não ficará desativada. Mas recomendo a prática do silêncio escolhido, tanto quanto a do debate franco e de questionamentos assumidos. Faz bem.

Somos seres complexos, e reconhecer essa condição é rumar ao simples, que sempre é genial e confortador. Não subestime o silêncio nesse processo.

domingo, 20 de agosto de 2006

A vida é curta


A vida é curta. Por enquanto, apenas 8 meses, dependurados na barriga em simbiose maternal. Aguarda o momento enquanto é segurado firme, a mãe segurando firme na barra do metrô para não cair. Os lugares, todos ocupados, incluindo os já a ela reservados.

A insensibilidade geral é larga. Bancos verdes, laranjas, sem preconceito de cor em honra à indiferença. A mãe se segura e os demais acomodam-se cegos, ou num fingimento cuja habilidade quase admiro.

O olhar da mãe é curto. Não almeja grandes conquistas, apenas um lugar naquele vagão. Um descanso exigido por lei natural e legitimado no direito, degolado na atitude ilegítima dos sentados. O olhar da mãe é curto e me corta. É comigo agora. Meu desespero em checar se realmente ninguém dos bancos reservados vai levantar é estimulante do meu erguer-me. Ela parece ter compreendido meu próprio olhar antes de mim: começava a deslocar-se em minha direção. Era hora de algo mudar.

A distância entre nós encurtou-se. Um homem no banco em frente a mim quase levita em marcha acelerada para preservar a vida curta e sua mãe, que senta à minha frente. Vejo seu rabo-de-cavalo a um palmo. Os sentados nos reservados poderiam hospedar-se num museu de cera. Estáticos gélidos de alma.

A viagem é curta e eu salto. Daqui a um mês ele vem à luz e me pergunto: em que lado se postará? Dos profissionais da frieza ou dos revoltados incomodados? Não saberá, por certo, que sua mãe participou do circo humano da dissimulação. Nem poderei relatar-lhe meu testemunho. "O mundo te espera, e cruel", eu diria.

domingo, 13 de agosto de 2006

PCC, mestre em Comunicação Social


Seqüestraram um repórter. UM repórter. Após centenas de ataques, outra centena de mortos, toques de recolher, paspalhices políticas e terror generalizado, o PCC resolve seqüestrar um repórter, funcionário do maior monopólio de comunicação do país. Após esse feito, seu vídeo de reivindicações, que fala da situação carcerária insustentável, é veiculado na íntegra, do contrário a pena de morte do repórter estaria assinalada.

É incrível que, até então, o noticiário só conseguia cobrir os momentos de pânico, influenciar ou relatar a repressão policial maior ainda, mostrar os chefões do PCC etc etc. Mas pouquíssimas vezes fizeram matérias sobre a situação carcerária do país, as condições para que ladrões de galinha ou de lojas de shopping se tornem monstros e que monstros nunca dêem meia-volta na sua vocação criminosa.

Mas no momento em que UM repórter da Globo é seqüestrado, todo o país é obrigado a ver o que os jornais teimam em não mostrar: as causas do problema.

Não discutirei aqui as origens de um criminoso, qual a melhor solução para a violência e a desigualdade social, ou coisa do tipo. Vou me ater ao fato da vez: como os principais representantes do PCC reiteraram sempre (incluindo Marcola na CPI do Tráfico), os ataques se repetem porque a situação carcerária é desumana, uma fábrica de bombas-relógio como a que estamos assistindo agora.

"Mas eles são desumanos também! Olha o que estão fazendo com cidadãos de bem! E eles não estão presos à toa!". Não estou negando isso.

No entanto, o sistema prisional brasileiro especializa-se dia após dia a piorar o que já está ruim. Imagine você juntar num cubículo para 12 pessoas cerca de 50 indivíduos com antecedentes criminais, de variados níveis e índoles. Além disso, trate-os como animais, abuse de sua autoridade diante deles. Há como conter essa panela de pressão por tempo indeterminado?

Esse é o tipo de cobrança que a sociedade também deve exercer sobre os governantes. Segurança pública não é apenas manter os marginais longe de nossas belas casas - é proporcionar condições para que os mesmos, se não forem ressocializados, ao menos não apresentem perigo iminente. E que não tenham motivação ou condições para isso. Prender e manter nas condições já referidas é fortalecer rebeliões futuras, quando a fúria será maior e mais organizada. É o que vemos em São Paulo.

Pois dessa parte da história a imprensa passa longe. Também não são abordados os casos (milhares de casos) de ladrões de pequenos furtos que já deveriam estar soltos e permanecem lá, pois não são Suzane von Richtofen para terem advogados acompanhando passo a passo os direitos de liberdade condicional etc que possuem. Ficam lá, sem esperança, e cujas únicas opções são a morte ou sobreviver por meio de facções como o PCC. Pioram, graças ao sistema prisional, que deveria nos dar segurança.

A imprensa encarna o espírito de classe média/média-alta que nos acomete hoje: bandido bom é bandido morto ou esculachado dia após dia. Não se percebe que esse tipo de postura, estendida aos governantes e suas administrações penitenciárias, é a pólvora perfeita para incendiar o Morumbi intocável. É muita ignorância.

Assim, qual é a maneira de mostrar à sociedade as causas de problemas tão graves de nosso sistema de segurança pública? Seqüestrando um repórter da Globo. Bin Laden faz escola, e a imprensa não aprende.

Como jornalista, fico temeroso em perceber que os canais de intermediação - a mídia -são cada vez mais desprezados para que conheçamos nosso contexto. E por pura incompetência e cegueira de seus donos, fingindo que vivem num mundo diferente por terem mais dinheiro. Ilusão que o PCC tem se especializado em desfazer.

Oro para que o repórter não pague com sua vida pela teimosia de governantes e donos de jornais.

sexta-feira, 7 de julho de 2006

Geraldo Lopes, jornalista


Talvez você não o conheça. Mas se você me conhece, recomendo o artigo que segue.

Repórter policial por mais de 30 anos, Geraldo passou por jornais como a Última Hora, O Globo, revista Manchete e foi editor de um marcante programa de TV: o Documento Especial, com reportagens urbanas e qualidade cinematográfica.

Eu, que desde minha 8a. série já queria ser jornalista, pude conhecer Geraldo quando trabalhei na Assessoria de Imprensa da Secretaria Municipal de Cultura do Rio. Ele já tinha mais de 50 anos e como tantos outros de sua geração, não conseguia mais emprego nas redações. A tal lógica burra do capitalismo: manda embora os mais velhos por terem maiores salários, e assim cortar custos. Desprezam a experiência e o conhecimento que os então demitidos acumularam e ainda tentam manter a qualidade do produto. Impossível.

Geraldo foi um instrumento de Deus para confirmar minha vocação jornalística. Ouvindo suas histórias (também falava em tom de reportagem) e lendo seus livros (era especialista em sistema prisional, ganhou o prêmio Jabuti em 2001) fui conhecendo-o melhor. E me conhecendo também. Ao conversarmos e ao ouvi-lo, vi que era aquele espírito de repórter que eu também possuía. Mesmo que nunca trabalhasse numa redação, eu seria jornalista sempre. Assim como Geraldo era, independente de seu momento.

Também foi um pai para mim, um orientador, alguém a me inspirar, que investia em minha carreira jornalística com conselhos e estímulos. "Pô, Lessa, você vai fazer 22 anos mas tem estrada de 40!", disse-me Geraldo há 4 anos.

Deixamos de nos ver por mais de 2 anos, e ao nos reencontrarmos ele descobriu que tinha câncer de estômago. Tentou os tratamentos tradicionais e um alternativo em Cuba. Não resistiu, falecendo em 20 de junho passado.

Há pouco soube que em algum país do Oriente (Japão ou China, não lembro), quando alguém morre, é feito um desfile em praça pública. Todos os familiares e amigos se vestem com as melhores roupas, dançam e cantam as músicas mais alegres, chamam a atenção dos passantes. Depois dos mais animados que abrem o desfile, vem o caixão. E após ele mais gente cantando e dançando. Em vez de lamentarem a morte recém-chegada, celebram a vida do que partiu. E que deixou saudade, marcas que serão para sempre lembradas.

Meu artigo celebra a vida de Geraldo Lopes. Permitindo-me um pouco de surrealismo, me multiplico em dez, cem, mil iguais a mim cantando e dançando na Av. Presidente Vargas, carregando o féretro. Paro o trânsito, os trabalhadores dos prédios olham e percebem que a celebração deve ser de alguém importante, num tempo em que a fama teima em ser inversamente proporcional ao diferencial das pessoas em nós.

As matérias de Geraldo são projetadas no céu, e todos suspiram nostalgicamente por um jornalismo que escrevia pensando em gente, e não em números. É um sentimento natural, uma vez que Geraldo não foi mais um. Foi um. E não foi pouco.

sexta-feira, 5 de maio de 2006

O fato

A necessidade de se mostrar nas letras. O incômodo de olhar a folha em branco, a caneta em punho, o coração pulsando por tantos motivos e apenas uma certeza: escrever.

Mas escrever o quê? Não sei, o que também me parece absurdo. Tenho uma lista de histórias para contar, mas não agora, não sei por quê. É mais transpiração e atendimento ao chamado de macular o papel branco. Como pode, um papel branco, branquinho, sem nada... escrito? É quase uma ofensa, uma insinuação insolente, desafiando aquele que não vive sem escrever, ainda que não escreva para viver. E ofendidos nós caímos na provocação, e não deixamos aquele marrento papel em branco em paz. Vêm os rabiscos organizados que lapidam a auto-estima do escritor.

E o impressionante é que se consegue escrever sem abordar nenhum assunto diretamente, apenas descrever o exercício metalingüístico da escrita pela escrita. Porque é isso que "mexe" com a gente, o ato de produzir as letras que urgem, a despeito de nosso momento ou contexto, se eles permitem ou não que escrevamos. E quando somos vencidos pela impossibilidade, a angústia reina em dobro: pelo fato de não podermos escrever e pelo desespero de que a inspiração/transpiração passe, erradicando a idéia, até então, digna de ser escrita.

Terror!

Pode ser pior, acredite. Podemos ter uma tendinite já aos 20 e poucos anos e ela doer tanto ao teclado ou à caneta, trazendo uma interrogação para possibilidades futuras de escrever (a não ser que ainda hoje se resolva o agravante da doença). Um obstáculo paradoxalmente benéfico, pois quando confrontados é que sabemos do que somos feitos, sabemos qual é a nossa busca. E a inconveniente tendinite me leva ao encontro da vocação inescapável, assunto que já mencionei por aqui tantas vezes. O espinho me traz a glória, e é impossível não sorrir diante desse fato, apesar do braço dolorido.

Assim prossegue a dança entre os sonhos e as possibilidades, revelada aqui nesse microcosmo de alguém com sua caneta e seu papel. Meus tendões e a lógica louca pós-moderna, que faz do excesso de tudo uma virtude inconseqüente e da qualidade de vida antes, durante e depois do pão de cada dia, um crime hediondo e nada lucrativo. Eu não pertenço a esse mundo, eu só pertenço a mim mesmo.

quinta-feira, 20 de abril de 2006

Ao atravessarmos a rua

Ao atravessarmos a rua, todo cuidado é pouco. É preciso olhar o sinal (ou farol, ou semáforo), aguardar os veículos pararem e seguir pela faixa de pedestres até o seu objetivo: o outro lado da rua. Uma tarefa simples e totalmente cotidiana, crucial para seguirmos em vida.

Agora imagine que, enquanto você está no meio da rua, alguém grita o seu nome. Você não sabe de onde vem a voz, tampouco quem está falando. Informações fundamentais para você decidir o que faz. Continua atravessando? Ignora a voz? Dependendo de quem for, você presta atenção e pode voltar à calçada. Ou atravessar mais rápido. Enfim, saber quem fala e de onde fala é que dá credibilidade à informação, permitindo assim que você tome a melhor decisão para seguir em vida.

Pois eu penso que os cidadãos brasileiros encontram-se na mesma situação diante da imprensa atual.

Muito se tem gritado daqui e dali, vozes elevadas querendo ostentar moral ou indignação, denúncias, pizzas de novo, culpados, absolvidos, interesses permeando a atmosfera. Você pode concluir que sempre foi assim e que, dependendo das conveniências e do nível de "rabo preso", não muda muita coisa.

Ainda assim, quero lembrar um exemplo que considero significativo na história recente da imprensa brasileira. Em 2002, a revista Carta Capital declarou abertamente o voto em Lula, e por meio de seus editoriais e artigos apoiava o candidato do PT. Enquanto isso, continuava cobrindo a campanha, como todos os veículos de comunicação.

Considero que a postura da revista foi a mais honesta, uma vez que nos ajuda a "atravessar a rua", até hoje. Quando lemos em suas páginas matérias sobre o Governo Federal e demais acontecimentos da atual cena política, sabemos qual a posição do veículo sobre seus sujeitos e objetos de análise e cobertura. Sabemos quem fala o quê, e de onde está falando. Isso se chama transparência.

Por outro lado, os principais jornais e emissoras do país teimam em nos dizer que são "imparciais" e "isentos", e que buscam o equilíbrio na hora de cobrir os acontecimentos. Diante do que temos presenciado nas páginas de jornais e blocos de TV, isso se chama estelionato. E com a audiência do cidadão brasileiro, o seu bem mais precioso (eu diria que a credibilidade é o bem mais precioso, mas não sei se tais veículos ainda se preocupam com isso).

Como distinguir as versões elaboradas dos fatos reais, uma vez que ninguém admite de onde está falando? E ainda flertam dia após dia com as aspas, aproveitando as falas de políticos daqui e dali, uma vez que os próprios veículos não têm coragem de assumir o DNA do que transmitem. Talvez por estarem com tanto "rabo preso" quanto aqueles que denunciam...

Seria muito mais benéfico para a democracia e para o Estado brasileiro se a imprensa compartilhasse com seu público uma informação tão importante quanto seus "furos": o lugar de onde se emite a mensagem. Isso daria mais elementos ao cidadão para decidir não somente seu voto, como também tantas outras decisões importantes para sua autonomia pessoal e conscientização nacional. Assim como desejamos dos parlamentares o voto aberto nas sessões, queremos a "apuração aberta" da imprensa no que diz respeito às intenções de suas pautas.

Ou sou só eu que preciso de um jornalismo responsável?

terça-feira, 4 de abril de 2006

O homem na corda bamba (*)

Está tenso. Tensiona os músculos e o espírito, e controla sua ansiedade para dar o passo seguinte. Ao mesmo tempo, preocupa-se em manter o equilíbrio. Qualquer passo em falso, verdadeira queda, derradeira morte. Não há rede de segurança, e ele precisa ignorar o abismo e lembrar-se dele, ao mesmo tempo. Avista o outro lado, quer chegar, mas precisa manter o ritmo.

Ao chegar perto, pensa em se apressar. Depois de tanta espera e suor, agora falta muito pouco. A tentação de se apressar é cada vez mais forte, mas ele sabe que se jogar pro alto toda a tensão administrada, atira-se abaixo. A ansiedade o envolve de tal forma que fica na dúvida se era mesmo pra ter seguido aquele caminho. " Era!" , ouve a confirmação em seu espírito.

O homem na corda bamba, personagem tão conhecido de quem já foi ao circo, volta a minhas memórias ao escrever esse editorial. Tentei observar o que ele agüenta lá em cima e fechando os olhos por um minuto, ao abrir me vi na corda. Meu medo de altura por companhia, pra deixar a situação mais dramática. Corda metafórica, sentimentos semelhantes ao de tantas fases de nossa vida.

Não sei que vozes o homem na corda bamba consegue ouvir durante sua exibição. Se o barulho da platéia o atrapalha, se pensa que nunca devia ter sido o que é. Mas ouvir " esse é o caminho, andai por ele" , na voz inconfundível do Espírito Santo, é tudo o que busco na minha corda. Quer dizer, vida. Acho que dá no mesmo.
(*) Originalmente publicado em 15/05/2005 no boletim dominical da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro

terça-feira, 24 de janeiro de 2006

Por trás das lentes dos meus óculos

Por trás das lentes dos meus óculos existe alguém ambicioso. Alguém que busca, minuto a minuto, algo que não há como saber se é cobiçado pela maioria dos seres humanos. Se é, tal procura não parece ser assumida publicamente. Uma ambição, como já disse, e não há outra maneira de descrever a perseguição desse objetivo, cujo caminho é cheio de armadilhas e auto-empecilhos. Por trás das lentes dos meus óculos existe alguém que não quer outra coisa que não a simplicidade.

É a rotina de acordar, lavar o rosto, tomar o banho que desperta, portar os óculos e me postar para a retomada diária da busca. É reassumir sem desespero as complexidades que nossa vida nos reserva, sabendo que isso faz parte da motivação para a busca. É ter sede de conhecimento, na vazão da leitura plural e sem preconceitos, nos contatos assimilados e mantidos, empreendendo os cinco sentidos no espocar das mídias e de suas informações.

Ao mesmo tempo, é sentir dor. Por mais que eu me esmere em buscar a simplicidade em todos os meus atos e palavras, construindo comunhão com quem está ao meu redor, sem ares de superioridade, ainda assim posso ser classificado como "superior". Ou intelectual, ou coisa parecida. E esse é um momento de angústia. De sentir na pele, na boca e na mente o gosto de distância, de ainda estar longe da tal simplicidade, uma vez que ainda sou assim classificado. De me sentir segregado enquanto remo com toda força contra essa maré.

E ao flagrar aqueles que pouco se importam em serem assim classificados, ou melhor, que se esbaldam em serem "especiais" e a quilômetros dos "seres humanos comuns", mantendo as barreiras que eu tento transpor - os "auto-empecilhos" - me vem a sensação de abandono. Abandonado entre os que sentem prazer em ser "elite", ao não comungar dos seus paladares; e abandonado por aqueles a quem tento me ladear no contato pessoal com a simplicidade, e que no entanto não detectam essa minha vontade, essa minha busca. Sinto-me só e incompreendido.

Por trás das lentes dos meus óculos existe alguém assim. E se existe alguém assim à frente das lentes dos meus óculos, que um dia a mim se manifeste. Vai ser um alívio renovador. Para ambos.

terça-feira, 10 de janeiro de 2006

Não!

Quem sabe dizer não? Você sabe? Eu sei? Não sei não. E por que não? Como saber? Apenas três letras, sempre imperiosas e imperativas por si só, por que não? Qual é a dificuldade? Por que tanto vício no aceite, no concordar sem questionar, no "engolir" e só depois perceber que desde o início a resposta devia ser "não"? E agora agüentar as conseqüências, nesse sentimento de vergonha secreta, em que só nós e o espelho nos torturamos mutuamente enquanto os beneficiados por nossa covardia se deleitam?

A comunidade do Orkut "Preciso aprender a dizer NÃO!" já conta com quase 80 mil pessoas! Nada comparado a 6 bilhões de habitantes do planeta. Ainda assim, 80 mil seres como eu que ainda não aprenderam a dizer a palavrinha em tantas situações, para o nosso próprio bem. Eu me pergunto: por que, tendo consciência desse problema, ainda é tão difícil dizer NÃO?

Encontro um fiapo de resposta no shopping.

A opressão do consumo rodeia a nossa vida desde o nascimento. As roupas e lojas de bebês são variadas, e não me venha com o papo de que haver concorrência baixa os preços e ponto final. Pois as vendas e a publicidade deixaram de existir a fim de proporcionar a subsistência de uma vida digna do básico, para exortar com capa de profeta a opulência necessária (a quem?). Precisamos todos consumir, embora quase nunca precisemos consumir tanto. A ideologia do consumo além do necessário, como estilo e proposta de vida, tem levado muitos a suicídios de personalidade por meio do superficial.

Consumir é dizer sim. "Sim, vou levar"; "sim, eu compro"; "sim, eu aceito"; "sim, por que não?". Suspeito que temos tanta dificuldade em dizer não pela extrema lavagem cerebral, corporal e intelectual do consumo, que só existe a partir do nosso "sim". Sem sim não há compra nem venda. Logo, é preciso um pouco de "sim" para não morrermos pelo caminho. Mas viciar em "sim", fazendo da crítica uma herege em cleros capitalistas, é morte em vida.

"Ô garoto 'vermelhinho'! Aposto que não despreza uma Coca-Cola ou um tênis novo!". Estão certos. Não desprezo. Assim como não desprezo o equilíbrio. Dizer sim a todo instante é gangorra enterrada de um lado só, sem movimento nem diversão, tampouco qualidade de vida. E o drama para dizer não (mesmo tendo a consciência total de que é aquilo que preciso dizer naquele momento) é o sintoma dessa situação doente na qual me vejo inserido. Quem ambiciona continuar doente?

Preciso aprender a dizer não. Preciso dizer não. Sem grosseria, mas com firmeza. Sem estupidez, mas com coerência. Sem intolerância, mas com amor. Sim, eu preciso dizer não. Pra mim e por mim.

Enquanto produzia mais essas linhas, o maldito Word recém instalado me perguntava, a cada palavra digitada: "A Auto Correção não está instalada. Deseja instalar agora?". Para continuar a escrever, era preciso clicar infinitamente: não! Refestelo-me na ironia...